Textos de Leitura, Consulta e Estudo - Etnografia da leitura e da fala num grupo de estudos espírita
 


Doutrina Espírita

Página inicial

Obras básicas (Kardec)

Obras complementares

Revistas

Textos diversos

Músicas

Programas

 

 

Textos de Leitura, Consulta e Estudo
Acervo digital espírita


Etnografia da leitura e da fala num grupo de estudos espírita
        
Bernardo Lewgoy - UFRGS, USP - Trabalho apresentado no seminário temático "Religião e Mídia". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. São Paulo, setembro de 1998.

Introdução 
 

  Esta comunicação baseia-se em minha pesquisa sobre oralidade e escrita no espiritismo kardecista. Partindo da hipótese da centralidade da escrita e da leitura de uma determinada literatura religiosa própria na socialização dos espíritas, busco aqui interpretar a imbricação entre texto, leitura e discurso num grupo de estudos,  freqüentado durante um ano num importante centro espírita em Porto Alegre. O grupo é fundamental na formação da identidade social dos espíritas em dois aspectos: em primeiro lugar por demarcar uma filiação a redes que unificam-se emblematicamente pelo posicionamento em certas questões de interpretação doutrinária. Em segundo lugar por ser uma das instâncias de construção do expositor espírita, a qual se realiza, de um lado, através do exercício de uma relação muito específica com a leitura de textos e, de outro, com a  prática de articulação de discursos com a ajuda de fórmulas retiradas de um repertório próprio. Assim tentarei mostrar que a “fala espírita” é sempre pautada pela preeminência da dimensão letrada ou seja, trata-se de uma oralidade sustentada por textos.

  O eixo de indagações aqui desenvolvido relaciona-se à inserção da “temática da oralidade e da escrita” (Olson,1997;  Ong,1982;  Goody,1982;  Havelock, 1996) no universo religioso e o modo de abordagem segue a inspiração da chamada “etnografia da leitura” (Boyarin, 1993) espécie de discussão que apresenta uma importante interface com a “etnografia da fala”) e com a apropriação da teoria dos atos de fala na reflexão  antropológica.

  Em que pese a importância geral das relações entre oralidade e escrita, fala e leitura para o estudo das  religiões em geral, a transposição dessa discussão para o  espiritismo justifica-se pela ênfase que ele historicamente reserva aos livros (sagrados, revelados, psicografados, etc.), à leitura, à oratória e à fala. De modo que a socialização do neófito neste espaço, seja pesquisador ou simplesmente um iniciado, implica num aprendizado que passa pela interação  e pela leitura1.  

   I - Assim, proponho que há, para cada trajetória individual no espiritismo, uma espécie de interação recíproca entre a assimilação de uma autoridade textual legada pela tradição e as formas de discurso oral atualizadas nas diferentes situações rituais do centro, esquematicamente divididas em três: palestras, contatos mediúnicos e discussões no grupo de estudos. Todos os momentos caracterizam-se pela interação entre texto e fala, variando na ênfase relativa de cada fator segundo a situação. Privilegio aqui a descrição e análise do grupo de estudos por ser uma instância fundamental de constituição da identidade espírita, por inserir a pessoa dentro do movimento e por ser o principal espaço de aprendizado das formas de leitura  e de fala no kardecismo. 

   II – Há dois níveis que podem ser distinguidos: uma observação das situações onde as práticas de leitura estejam presentes, e a pergunta pela existência de uma leitura espírita, de um conjunto de protocolos que a individualizem. Nesse sentido, trabalharemos com a hipótese de que a  leitura e a interpretação oral no grupo de estudos espírita tem uma lógica que não se esgota em nossa visão segmentada de leitura mas está associada ao ethos do grupo, à atualização cotidiana da identidade religiosa de seus membros, dentro e fora do centro espírita, a ideais de formação do expositor espírita  e, finalmente , à cosmologia e às  práticas de espiritualização, onde a exegese e o comentário são parte englobada de um complexo maior. Com relação à forma de exegese dos textos no grupo de estudos observo que não é seguido o padrão analítico-referencial (cartesianamente, decomposição analítica em unidades mínimas constituintes) mas sim a regra da exigência de totalização e produção de sentido, mesmo que a partir de fragmentos: os comentários de textos decorrem de um habitus, de um princípio que permite elaborar improvisações orais eficazes adequadas a um timing e um público. Esse habitus leva em consideração os conhecimentos espíritas já incorporados pelo falante mas faz também um uso especial da linguagem nas situações rituais, onde pode-se identificar fórmulas de estruturação do discurso. Não importa a passagem ou fragmento de texto disponível, o espírita é socializado a sempre generalizar em seu comentário, a buscar as costuras maiores entre os argumentos. Nesse sentido o comentário oral espírita é permeado por um padrão sintético e totalizador, que atualiza não um conteúdo imanente de um texto, mas antes os códigos do grupo através do repertório de cada membro.

   III - O princípio de exigência de totalização coaduna-se com a estratégia oratória, observada nas palestras dos centros espíritas, dirigidas a um público maior. Na análise das palestras trabalha-se aqui com a hipótese de sua legibilidade descontínua: Devido à forma como os espíritas organizam os seus discursos, o ouvinte pode engajar-se numa compreensão de parte de uma palestra  sem  ter  de entendê-la por completo.

   O material aqui discutido é oriundo fundamentalmente de observações etnográficas que venho desenvolvendo há alguns anos no movimento espírita de Porto Alegre. Devido à constante referência à produção escrita no espiritismo e à questão da paridade epistemológica entre oral e escrito – que desenvolvi alhures, em Lewgoy, 1998 – o uso de fontes escritas espíritas acompanha peri passu as informações etnográficas, de modo que a trajetória no grupo  é também um percursos de leitura para o pesquisador. 
 

a) Participando do grupo de estudos: crenças do antropólogo e realidades nativas 

      Há uma dificuldade essencial na abordagem do sistema espírita, que deriva da complexidade dos aspectos que podem ser invocados pelo pesquisador para produzir uma imagem coerente desta religião. Resumidamente, o espiritismo kardecista caracteriza-se por ser uma religião de múltiplas entradas, monopolizado em suas instâncias de legitimidade e poder por grupos letrados e cujo problema antropológico de análise remete à possível diversidade das adaptações práticas locais de um conjunto comum de fontes escritas2.

      Para as finalidades de nossa discussão, convém salientar que as indicações escritas servem de início para este recorte, onde o kardecismo delimita-se pela referência às obras de Kardec, basicamente O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, A Gênese e O Céu e o Inferno, apelidados de o Pentateuco kardequiano3. A denominação obras básicas abrange os três primeiros títulos do conjunto mas, por serem consideradas pelos espíritas como formando a base essencial da Codificação,  esta formada pelo conjunto da obra de Kardec. Em termos empíricos o Livro dos Espíritos funciona como referência básica de leitura para os grupos de estudos, em conjunto com cartilhas didáticas preparadas pela federação Espírita Brasileira. Tanto as obras espíritas como os pesquisadores que se debruçaram sobre o tema assinalam que o Livro dos Espíritos, assim como o resto da Codificação, é concebido como um livro revelado pelos Espíritos, contendo não a doutrina de Kardec mas a doutrina dos Espíritos, o que é de crucial importância para a compreensão do sistema espírita, alinhando-o na tradição religiosa que se inspira na referência e leitura de livros sagrados, como a Bíblia e o Corão4.

      Do ponto de vista etnográfico, o primeiro problema é o do recorte das fronteiras do grupo. No caso de uma etnografia da leitura  no espiritismo, a delimitação da unidade sob análise não basta: para iniciar-se no grupo, o pesquisador é ali orientado pelos informantes a ler um conjunto de obras, sendo assimilado à condição de leigo ou iniciante. Não há um posto especial ou um terceiro lugar entre o dentro e o fora para quem deseje fazer observação participante num centro espírita, como freqüentemente ocorre em trabalhos sobre religiões afro-brasileiras. Há uma hierarquização estabelecida que presume não tanto a desigualdade de saberes mas a desigualdade de esclarecimentos entre os espíritas e os não-espíritas. Quando fui comprar o Livro dos Espíritos pela primeira vez,  no posto de venda de livros da Sociedade Espírita Allan Kardec (a mais antiga sociedade espírita de Porto Alegre, 1894), um senhor advertiu-me que  

eu deveria comprar as três obras básicas se eu quisesse estudar Kardec, que não adiantava eu comprar só uma porque elas formavam uma unidade.  

Essas orientações espontâneas são comuns neste ambiente, encaradas como um dever daqueles que têm mais tempo de espiritismo. Cabe aqui uma primeira observação. Se a idéia de uma “hierarquia de potencial” (Cavalcanti, 1983) funcionava como uma instância intelectual de hierarquização neste grupo, o componente da “antigüidade na doutrina” também era usado pelos informantes como uma espécie de identificação hierarquizadora complementar, certamente importante num sistema religioso que tanto valoriza a igualdade entre os participantes5. Por exemplo, ao questioná-la sobre a palestra doutrinária proferida, a informante retrucou-me  afirmando:

ora quem sou eu para dar palestra, eu só comentei um trecho do Evangelho 

      Outra expressão  comum era  

sem a pretensão de saber alguma coisa, é essa a minha convicção dentro dos meus modestos vinte e oito anos de participação nas hostes do espiritismo. 

A afirmação da despretensão, combinada ao argumento de autoridade “vinte e oito anos de participação” compõem uma espécie de retórica espírita regida por um protocolo ou código de humildade, onde diminuir-se é um ato de polidez verbal. A humildade opera como um valor de múltiplas implicações na doutrina e na prática espírita. Ela não apenas indica a presença de uma “atitude cristã”, associada à prática da caridade, como também viabiliza a atividade mediúnica, por situar o médium numa posição de dependência e diminuição do eu que favorece a passagem do Espírito comunicante. De outra parte, a humildade funciona como um recurso da retórica espírita, espécie de polidez prévia a iniciar qualquer fala que implique um posicionamento mais personalizado, como que prevenindo um juízo alheio sobre sua arrogância ou pretensão. No entanto, naquilo que não coloque a individualidade em jogo não há necessidade deste protocolo, como na orientação espontânea que recebi na livraria. 

      O primeiro informante que entrevistei, intelectual com livros publicados e bastante prestigiado no movimento espírita -  fez questão de me conceder a entrevista numa pequena sala do centro espírita que freqüentava. Na entrevista, o professor Álvaro empregou um tom escolar, como se explicasse a doutrina a um leigo, em que pese ter-lhe verbalizado o meu interesse sobre a psicografia e a literatura espírita. Como intelectual espírita com passagem pela academia - mestre em Biologia - Álvaro preocupava-se em demonstrar ao interlocutor “quão cientificamente estabelecidos estavam os princípios da doutrina”, assim como o “rigor experimental” que a presidia. O tom didático, utilizado numa retórica fluente e pausada, indicava um método de exposição oral ao qual já estava habituado, que consistia em separar o exposto da trajetória de vida do expositor, sistematizando a doutrina e demonstrando o seu aspecto empírico. A qualificação do interlocutor certamente foi levada em conta, dentro de uma lógica de persuasão acostumada às alternativas excludentes de contestação e aceitação por parte do público. Por mais que explicasse minha condição de antropólogo, os informantes sempre interpretaram minha pesquisa abstraindo o estudo sobre os espíritas e detendo-se no que consideravam um julgamento sobre a validade de sua doutrina.

      Quando fazia observações na Livraria Espírita Luz e Caridade, a responsável pela livraria manifestou o desejo de conhecer-me e ao trabalho que realizava. Marcamos no centro espírita numa terça-feira à tarde, quando se realizaria uma palestra doutrinária com passes. Carla enfatizou que desejava que eu lhe entregasse um pequeno texto explicando o meu trabalho.

      O Instituto Espírita Luz e Caridade tem 60 anos de existência, sendo um dos mais conhecidos e prestigiados da Federação Espírita do Rio Grande do Sul. Localizado num bairro de classe média da capital gaúcha ele conta com dois prédios, divididos segundo a finalidade de uso: um é o departamento de Assistência Social, com creche que atende a cerca de 100 crianças, atividades de oficina (corte e costura e  restauração de móveis) e organização de eventos beneficentes, como chás. Na parte traseira do terreno situa-se um auditório com capacidade para mil pessoas (o qual só funciona eventualmente) sendo por isso freqüentemente requisitado pela Federação para eventos de grande porte, como os recentes encontros com Divaldo Franco e Marilusa Vasconcelos, em 1997. Na entrada do terreno, com cerca de 20 anos encontra-se o prédio do departamento espiritual, onde se concentram as atividades cotidianas dos freqüentadores da instituição: palestras, passes, atendimento fraterno, preces e irradiações (públicas), Desobsessão, grupo de estudos e desenvolvimento mediúnico (privativas). O térreo conta com uma pequena biblioteca e salas para as atividades mediúnicas e dos grupos de estudo, que ocorrem em datas e horários semanais fixos, respeitando a grande ênfase que os espíritas atribuem à pontualidade, aliás característica generalizada no espiritismo brasileiro. Em quase todos os dias úteis realizam-se palestras com passes no andar superior do prédio, onde há um auditório para cerca de duzentas pessoas, que se acomodam em cadeiras simples de madeira. Nas segundas-feiras transcorrem os trabalhos de Desobsessão, na parte da tarde. Nas quartas-feiras à noite realizam-se os trabalhos de desenvolvimento mediúnico. Os dois grupos de estudo que funcionavam durante meu trabalho de campo ocorriam simultaneamente nas quintas-feiras às 18:30hs, prolongando-se até minutos antes das 20:00 hs quando se iniciava a palestra ministrada por convidados, atividade que invariavelmente lotava o auditório menor. O centro, austero na aparência dos tons cinza e no despojamento de sua aparência - quadros de avisos, alguns cartazes, uma estante envidraçada com edições antigas de livros de Allan Kardec, Gabriel Dellane. Camille Flamarion e Rochester - em tudo enfatiza a simplicidade do ambiente. Tudo se passa como se o rico imaginário kardecista sobre a vida no mundo espiritual fosse um  contraponto a essa constante ostentação de austeridade nos espaços dos centros espíritas.

       Após assistir à palestra e receber o passe, fui conduzido a um outro prédio onde eles costumavam tomar chá à tarde e conversar informalmente. O Instituto Espírita Luz e Caridade é dirigido pelo sr. Jader, militar reformado, tendo como diretor do departamento espiritual  o sr. Alberto, outro militar reformado. Suas esposas também são ativamente engajadas nas atividades da casa. De fato, na direção das atividades da casa espírita predominam pessoas que já não estão sobrecarregadas nem de trabalho doméstico - mulheres com filhos adultos - e nem trabalhadores da ativa - caso da maioria dos homens com postos administrativos no centro espírita. Ali fui questionado sobre a minha pesquisa e, novamente, meus informantes esperavam falas curtas de minha parte, a partir do que eles iriam localizar minhas inquietações dentro de um sistema de classificação prévia dos interlocutores. Fui inquirido não apenas sobre o meu trabalho mas sobre a minha relação pessoal com o espiritismo, aonde o mero interesse científico se afigurava pobre como justificativa. Nesses contatos iniciais eu testemunhava uma relação inversa à curiosidade de meus pares antropólogos sobre minha escolha de objeto, ainda que a grande questão, para ambos, fosse a da minha possível identidade espírita. Enquanto para os antropólogos assumir uma condição de espírita bloquearia a atitude de distanciamento, pervertendo o desenrolar do trabalho, para os espíritas isso é uma condição para o bom entendimento da doutrina, na medida em que, segundo eles 

a razão não poderia deslanchar se não andasse de mãos dadas com a fé... 

      Uma série de afirmações indiretas foram lançadas durante a conversa, como uma espécie de teste de minhas posições, especialmente quando falavam de Chico Xavier e da impossibilidade de uma pessoa razoavelmente esclarecida não reconhecer a autenticidade de seu trabalho mediúnico. Sabendo de minha curiosidade em participar de um grupo de estudos e não meramente testemunhar sessões mediúnicas, foi natural enquadrarem-me na classificação de simpatizante da doutrina espírita. Como percebi mais tarde, no grupo se delineava uma contínua expectativa de minha adesão à doutrina, que é uma categoria nativa freqüentemente  utilizada para designar a conversão ao espiritismo. A idéia de adesão remete à centralidade da noção de livre-arbítrio no sistema, onde a própria aceitação da doutrina não pode prescindir do exame racional de seus postulados, ainda que uma situação de sofrimento ou perda possa ser considerada a motivação inicial para transpor a entrada de um centro espírita6.

      Ao manifestar o meu desejo de observar um grupo de estudos fui conduzido à presença do sr. Alberto, um homem na faixa dos cinqüenta anos, militar aposentado e dirigente do departamento espiritual do centro. Perguntado sobre  a minha formação, disse-lhe que era antropólogo. Sem chance de dar uma explicação maior sobre o teor do trabalho que desenvolvia, Alberto sentenciou que “o livro mais importante para eu ler era “A Gênese”, de Allan Kardec”, que 

várias das coisas que poderiam me interessar estavam desenvolvidas naquele livro.  

Para um pesquisador que mal teve chance de expor o seu trabalho, parecia-me absolutamente inusitada a indicação, tão precisa a partir de tão poucos elementos. Mais tarde, vim a compreender que, dentro do kardecismo, todo aquele que procura o centro, não sendo participante reconhecido do movimento espírita, é tratado como alguém que ali vai em busca de uma orientação, dentro do continuum que vai do consolo à  instrução. Eu, como antropólogo não escapava à órbita desse sistema de classificações. Se o que me impelia a procurar o centro poderia ser o pretexto de uma pesquisa, descartada a alternativa de ser um adversário da doutrina, restava-me o lugar de um “espírita em potencial”. Dispondo-me a participar do grupo de estudos, sobre essa classificação sobrepunham-se critérios hierárquicos de ascendência sobre a minha pessoa. Ora em diante, eu estava ali para aprender a doutrina espírita e teria o mesmo tratamento de todos os principiantes, devendo submeter-me às normas de funcionamento do grupo. Meus informantes alternavam, assim, curiosidade com relação à pesquisa que eu desenvolvia com ascendência face à minha posição de neófito, sempre na expectativa de uma adesão, que nunca confirmei ou neguei.

      Fui encaminhado ao grupo de Andrea, sua esposa, que realiza-se às quintas-feiras, às 18:30hs. Quando cheguei, entrei numa sala onde vi cerca de dez pessoas à volta de uma mesa. Expliquei ao coordenador, o que eu estava fazendo ali, ao que rapidamente ele me interrompeu afirmando que aquele não era o grupo de Andrea, mas eu poderia ficar ali, se quisesse. Meio constrangido aceitei o convite e, pelo que em breve eu entenderia, aquela era uma decisão importante, que eu não tinha a plena liberdade de ficar alternando entre um grupo e outro. Mais tarde eu compreenderia que os grupos não se diferenciavam apenas pelo que eu supunha ser a diferença principiantes/adiantados7 mas definiam redes dentro do centro, marcavam identidades, que se processavam principalmente pela filiação a um certo estilo de interpretação da doutrina espírita e dedução de suas conseqüências práticas O grupo de que participei ostentava um tipo de leitura mais “liberalizante”, destacando o cunho social de  algumas posições doutrinárias e, esporadicamente, opunha-se ao que alguns participantes de seu núcleo principal consideravam o  “conservadorismo” e “visão fechada” do “outro grupo”.

      Ainda que não houvesse homogeneidade de posições, a participação num determinado grupo de estudos tem uma nítida função identitária no universo espírita. Pude constatar isto quando Graça (a esposa do diretor do centro) que participava do “outro grupo” juntou-se a nós para a reunião do grupo do estudos. Conhecida por sua capacidade de polarizar e assumir posições bem  marcadas no centro, sua presença provocou uma viva reação de Ronaldo, o coordenador: “o que é que a senhora está fazendo aqui? O seu lugar é no outro grupo.” Mesmo após verbalizado este sentimento de invasão de uma fronteira entre os grupos, Graça permaneceu na sessão e Ronaldo terminou por provocar um debate onde se delimitaram suas diferenças, por intermédio da política. A questão era sobre a maturidade do povo brasileiro para tomar as suas decisões e a confiança que se deveria depositar nos seus governantes. Graça manifestou-se afirmando que “quando o povo, tal como uma criança, não está maduro e tenta assim mesmo agir, a situação acaba numa bagunça, numa desordem; daí porque era necessário um governante com mão firme, como se fosse um pai severo, que tomasse para si a responsabilidade de tomar decisões para o bem daquele povo”. A fala, identificada com a “simpatia pelo autoritarismo”, chocou aos membros do grupo politicamente mais “à esquerda” e iniciou-se um debate acirrado, em que a própria existência de um carma coletivo era invocada para interpretar a conjuntura brasileira8. Sem deixar de reconhecer o interesse implícito do conteúdo do debate, importa ressaltar que, provocado pelo diretor do grupo, ele serviu para explicitar e marcar diferenças para os participantes, atualizando a função identitária nos três planos discutidos em Duarte (1986), emblemática, contrastiva e valorativa. Emblemática, por servir a finalidades de identificação dentro do centro espírita;   contrastivo pelo mútuo jogo de diferenças entre os grupos atualizados nesta pertença em que a diferença em relação ao outro ajuda a demarcar a identidade social e, finalmente, valorativo pela filiação a uma determinada exegese da doutrina espírita, onde a ênfase diferencial de determinadas fontes escritas, mais especificamente o que vale enquanto complementação às obras básicas, é tão importante quanto o estilo de interpretação realizado. Além disso, na relação com o grupo, que tinha cerca de dois anos de existência, pairava a expectativa de conseqüências práticas, de um curso de ação a ser tomado pelos participantes enquanto grupo, sintetizada na proposta recorrente vamos sair para fazer a caridade.

      A relação com as fontes escritas era outro caminho fundamental de elaboração da identidade do grupo. Tanto Ronaldo quanto Aldair, seu assistente - químico, 28 anos de espiritismo -  criticavam uma aceitação tida como “deslumbrada” de Emmanuel (o protetor espiritual de Chico Xavier) através  de alusões ao que consideravam frases esteriotipadas  como  “Emmanuel maravilhoso”. Sem negar frontalmente a sua importância, os coordenadores insistiam que esta atitude  de deslumbramento era contrária ao sentido do espiritismo, por obscurecer o exame racional das mensagens e induzir ao fanatismo. Os coordenadores alegavam que muita gente se escorava em clichês, sem conhecer direito nem a obra de Kardec, nem a de seus sucessores. Tanto que um dia eles disseram, ao final de uma reunião, “o espiritismo, para nós, é a obra de Kardec mais as obras de Léon Denis e Gabriel Dellane”, como que chamando a um reencontro com as fontes escritas originais da doutrina.

      O grupo de estudos era formado por um núcleo fixo de cerca de 10 pessoas mais umas dez que variavam, geralmente vindas a convite do coordenador, ocorrendo numa pequena sala à volta de uma mesa. Havia pessoas que sentavam na mesa e outras que preferiam permanecer numa posição mais periférica, numa segunda fileira.  Isto não era  um indicador explícito de uma situação de hierarquia, ainda que os informantes mais conceituados no centro geralmente se sentassem à mesa. Indicava, antes, uma disposição de intervir no debate9.

       Alguns acompanhavam atentamente o texto e outros ficavam na típica postura espírita de concentração, os olhos fechados, a testa franzida, a cabeça levemente arqueada para baixo. O que de início lembrava-me uma preparação para uma incorporação ou um estado de prece era fundamentalmente uma apreensão auditiva das falas da reunião, empregando técnicas corporais  oriundas do domínio do transe, sem deixar de guardar relações a atitude de prece ou concentração para o trabalho mediúnico. Tanto é que os participantes que estivessem nesse estado não eram interrompidos ou solicitados a falar pelos demais, enquanto assim permanecessem. O estado de espiritualização presumida - que pode ser de prece, concentração, meditação ou transe mediúnico é, em geral,  respeitado e resguardado de interferências externas não apenas por indicar uma situação valorizada de contato espiritual, ainda que o grupo de estudos não seja o espaço adequado do transe. Os espíritas acreditam que uma interrupção brusca de situações de concentração ou transe pode acarretar prejuízos físicos e emocionais ao médium10. Como em outras situações o médium que se concentra pode estar também objetivando a manutenção de vibrações positivas para o bom andamento da reunião. A prece , no sistema espírita, é associada a uma interlocução com o alto: portanto, aquele que se encontra num estado visível lido pelos demais como tal é retirado do circuito de interlocutores ratificáveis, por se encontrar num “diálogo” de maior relevância.

       Dentro do sistema espírita, toda atividade ritual demanda uma preparação do ambiente em que encarnados colaboram com desencarnados para uma faxina espiritual do ambiente, que acontece antes da sessão, equilibrando os fluidos presentes.  Há sempre necessidade de um timing entre as diversas atividades, a fim de que esse equilíbrio possa se restabelecer. Por exemplo, o grupo de estudos - ainda que se realize na mesma sala, não funciona no mesmo dia da Desobsessão, pois há o risco de que o ambiente não estivesse ainda limpo das presenças espirituais que ocuparam o espaço, por isso a necessidade de um tempo razoável entre uma e outra atividade.

       O atividade do grupo de estudos dividia-se em 40 minutos de leitura e debate de uma passagem do Livro dos Espíritos e pouco mais de uma hora de leitura e debate de uma cartilha de uma cartilha didática produzida pela FEB11.Com todas as atividades espíritas, a pontualidade é extremamente valorizada, ainda que nem sempre houvesse concordância quanto à sincronia dos relógios. A função do diretor do grupo não se esgotava no encaminhamento da atividade, estendendo-se a observações morais, por vezes de reprovação a atrasos, por vezes comentários sobre os participantes onde uma certa ironia se fazia presente, o que de início me surpreendeu. Com o tempo compreendi que isto integrava uma relação de autoridade que deveria ser constantemente reiterada. Por exemplo, em certa ocasião Ronaldo advertiu Antônia pelo atraso de quinze minutos. Esta, médium muito respeitada no centro, retrucou que no relógio dela não havia atraso, que o dele é que devia estar com algum problema. Como numa sala de aula os participantes do grupo eram levados a compreender que deviam uma espécie de satisfação se não comparecessem a alguma sessão. As jocosidades e os deboches,  que percebi entre alguns membros, ainda que não predominassem, serviam para escoar tensões e aludir a rivalidades, relações de poder e comparações pessoais no interior do grupo. No espiritismo, ainda que se possa fazer comentários sobre atitudes que levem a crer no atraso espiritual de alguém, não se fazem comparações pessoais, não se comenta diretamente sobre o estágio espiritual de evolução. Trata-se do que chamarei de restrição à personalização. O humor, é por vezes, o único caminho para realizar as avaliações mútuas e comparações  interpessoais:

O Zeca que é o mais evoluído de nós, não tem esse problema dos podres do passado. 

Trata-se aqui de uma alusão irônica aos comentários que fluem no centro sobre o comportamento moral e espiritualidade deste médium. A ironia, ao explicitar comentários não-autorizados sobre a evolução espiritual de um colega, funciona como um recurso para inverter no sentido igualitário essa hierarquia presumida, escoando parte da tensão ligada à convivência de pessoas heterogêneas através da referência jocosa a suas diferenças.

Isso de problema de casamentos provacionais, que a maioria das pessoas passa,  não se aplica ao Clóvis e à Antônia, que são o casal vinte aqui do grupo. 

O humor dirigido em relação a este casal, muito valorizado pela percepção da qualidade de seu vínculo, cumpre a mesma função do exemplo anterior. No entanto, nem sempre a jocosidade é bem recebida. No segundo caso ela foi interpretada como sarcasmo, tendo sido rispidamente respondida por Antônia dizendo “Não é verdade. Nós também temos os nossos problemas”, sem a sinalização verbal do sorriso, quebrando assim o jogo de fala humorístico que havia se instaurado.

      Num sistema tão marcado por controles mútuos, incentivo à extrema responsabilização da expressão e pelo decoro igualitário, é compreensível que, nos debates, seja estimulada a expressão bem marcada de posições por vezes fortes e explicitamente antagônicas, como tantas vezes testemunhei. No espiritismo, como já havia assinalado Cavalcanti, a noção de carma implica na idéia de um cosmos pleno de significado, de modo que não há ato ou pensamento humano, por mínimo que seja, sem implicações morais. Assim, a expressão verbal, por menos importante que pareça, é sobrecarregada de sentido e, por conseqüência, enfatiza-se muito a responsabilidade individual com a linguagem.   Em segundo lugar, o decoro igualitário espírita interdita a expressão pública de conflitos e diferenças pessoais que não trilhem o caminho da divergência fraterna de opiniões:  a expressão verbal é idealmente marcada por um respeito absoluto ao outro e à sua individualidade. Cumpre assinalar também que, nas condições de um grupo que sobrepunha laços de amizade e conhecimento prévio e, tendo  ainda uma finalidade identitária, a sustentação permanente de um ethos de formalidade tornava-se extremamente penosa. Logo, o humor complementa  e compensa as restrições à personalização, elaborando indiretamente essa  área crucial de seu ethos12.

      O esquema da sessão dividia-se em prece de abertura, leitura oral de trecho do capítulo, comentário do diretor e debate, leitura e debate da cartilha didática e prece de encerramento, feita sempre por um membro do grupo a pedido do coordenador. Também as leituras orais são solicitadas pelo coordenador aos participantes, assim como comentários dos trechos lidos.

      Sendo a função explícita do grupo a formação do orador espírita, a escolha do coordenador obedecia aos imperativos de envolvimento com o espiritismo, conhecimento da doutrina e capacidade de liderar e ensinar, mas sobretudo na ostentação de um modelo de expressão oral a ser seguido pelos demais. Nesse sentido a oratória do coordenador deve ser clara, pausada e didática, sendo isto exigido também dos demais participantes. O coordenador faz as preces de abertura e encerramento (a segunda com a colaboração de um membro do grupo por ele designado) e introduz os debates, impedindo a dispersão em conversas paralelas, e organizando o rumo da discussão quando julgava que havia um desvio do ponto central. Sua fala deve ser gramaticalmente correta, sem gírias ou maneirismos de linguagem, podendo-se verificar a presença de um modelo letrado subjacente à sua expressão.

b) A prece e o uso especial da linguagem 

      Como já registrado na literatura13, a prece abre todos os trabalhos espíritas, sendo concebida como uma relação direta de elevação e contato com a espiritualidade superior. Convém assinalar que, ainda que haja coletâneas de preces espíritas desde a obra de Kardec, fornecendo um molde verbal a ser utilizado nas diferentes situações rituais e cotidianas dos kardecistas, o que importa é a atitude de dependência e subordinação do fiel às forças invocadas e menos a repetição de uma reza decorada. Assim, a prece é realizada a partir de um modelo que implica num timing e numa atitude lingüística e corporal. A técnica corporal é conhecida: as pessoas fecham os olhos e se concentram, com as mãos sobre a mesa ou em cima das pernas junto aos joelhos, enfatizando a exteriorização do ethos de respeito, humildade, subordinação e elevação. No aspecto do timing ela é variável mas não são recomendadas preces longas no grupo, perfazendo no máximo um ou dois minutos. Lingüísticamente, ela é marcada por uma entonação de súplica, pausada, em voz alta e, na medida em que se está em grupo,  é falada na primeira pessoa do plural, o chamado “plural de modéstia”. Tendo em vista que o relevo é conferido à atitude são permitidas improvisações em torno de um molde formular dentro do tema. Se o tema é o estudo deve haver frases que falem disso na prece, ainda que sem um texto predeterminado. Também os termos adotados na prece são retirado de um repertório de máximas e expressões que poderíamos caracterizar como uso especial da linguagem no espiritismo, onde abundam termos compostos como “campo energético propício” ou “mercadejávamos” ou “veneranda entidade”. Este uso especial da linguagem está decalcado numa certa visão literária e retórica da expressão verbal, marcada por arcaísmos, predileção por categorias compostas (por vezes de três vocábulos) e o emprego recorrente de máximas morais durante os atos de fala. No caso da prece há uma certa ordem hierárquica de mediadores que deve ser respeitada, de acordo com o plano de evolução espiritual suposto de cada um, 

Pedimos a Deus, nosso pai maior,  a Jesus, a Allan Kardec e aos amigos espirituais, que permitam o sucesso deste momento de meditação e aprendizado, permitindo que um campo espiritual positivo harmonize as nossas energias, sintonizadas no amor, na dedicação ao próximo e no desejo de aprender e que somente Espíritos de luz iluminem os nossos pensamentos neste trabalho tão importante que agora se inicia. 

      Em primeiro lugar, ela é oral e coletiva, mas sempre enunciada numa fala individual, que pode ser complementada pela recitação grupal de uma prece decorada como um pai-nosso. Nesse sentido, a prece segue uma estrutura formular que viabiliza adaptações locais e individuais dentro de um esquema que todos conhecem e manejam. O espiritismo, dentro do que caracterizaremos de  tensão emblemática entre letra e Espírito,  valoriza uma atitude tida e vista como interior, daí a liberdade estimulada de improvisar em torno do tema. No entanto, a estrutura formular impõe limites e dirige a improvisação. A seqüência escalonada de referências é protocolar: não se admitiria uma elocução do tipo “agradecemos a Deus, aos amigos espirituais e a Jesus”, por desrespeitar a ordem hierárquica do maior ao menor.

       A prece é um tema de ampla elaboração na literatura e na fala dos espíritas, guardando diferentes conotações além da referência comum de uma disposição espiritual de ligação e diálogo com um plano espiritual superior. Nesse sentido, ela é um importante pólo de reflexão sobre contatos espirituais, comportando diferentes usos e crenças subjacentes. Na prece, o fiel estabelece um contato com o alto mas, dentro da concepção espírita de pessoa (um compósito relacional de forças e entidades atraídas por afinidades e por carmas comuns) ela é concebida como irradiadora de uma espécie de força que atrai Espíritos de diversos tipos. Isto tem por conseqüência a produção contínua de um imaginário espírita sobre a prece, que tematiza a sua função e aplicações nas mais variadas circunstâncias .  Certa vez Ronaldo afirmou que  

em meditação havia concluído que sempre que orar deve fazer uma dupla oração, pelo irmão na mesma faixa vibratória, sendo também necessária uma terceira prece, pelos irmãos obsessores, encarnados ou desencarnados.  

      O coordenador salientou também a importância de orar em voz alta, “senão os Espíritos de baixa evolução, que necessitam de som, não escutariam”. Abriu-se, então, uma ampla discussão sobre as visões e as práticas de oração  dos membros do grupo. Para alguns, a prece não era apenas uma invocação ou reza, mas um estado intuitivo a ser mantido vinte e quatro horas por dia. Para outros, isto era dependente do dia e do estado espiritual de cada um, de acordo com o clima que se percebe se faz um tipo de vibração e de prece. Elvira, a participante mais velha do grupo, cerca de 75 anos, relatou que costuma fazer preces pela manhã e à noite, antes de dormir. Certa vez ela achou que estava fazendo preces demais e diminuiu um pouco a quantidade de orações. Elvira relatou então que

ficou doente por ter baixado a guarda (“com muitas dores no corpo, fechei os olhos e só via escuridão”) e os inimigos espirituais puderam agir. Teve que rezar muito mas só conseguiu se desvencilhar da enfermidade com a ajuda de uma sobrinha, também médium, que lhe ajudou a fazer uma limpeza na casa.

      Outros membros afirmavam que a prece nem necessita de palavras, é mais um estado, um pensamento amoroso que se difunde pelo fluido cósmico universal. Novamente aqui se expressa um conjunto aberto de crenças que caracterizaremos como complexo da prece. Em primeiro lugar, como o espiritismo coloca o pensamento numa posição englobante em relação à linguagem, é compreensível que a prece possa ter eficácia mesmo sem palavras, na forma de um estado, como os informantes assinalaram, citando o texto “Conduta Espírita”, de André Luiz-Waldo Vieira:

“Quando possível, abandonar as fórmulas decoradas e a leitura maquinal de ‘preces prontas’ e viver preferentemente as expressões criadas de improviso, em plena emotividade, na exaltação da própria fé.

Há diferença fundamental entre orar e declamar.”(1960 : 96). 

      A  síntese da concepção espírita da prece, expressa neste texto expressa a importância do improviso,  da emotividade e da inspiração pela fé, opostas à leitura maquinal, à fórmula decorada e à declamação, estes tidos como traços de uma oração superficial externa e vazia.

   O complexo de representações sobre a prece já estava sistematizado nas obras de Allan Kardec, especialmente no capítulo XXVII do ESP “Pedi e obtereis”. No parágrafo 17,  falando de “preces inteligíveis” Kardec aponta que, ainda que a prece autêntica dependa do pensamento (que não necessita da linguagem) e do coração (simbolizando a fé autêntica) ela precisa ser expressa em palavras acessíveis para se difundir aos outros homens. Sendo inteligível ao ouvinte, ela repõe a questão forma-fundo: 

“Deus vê o que se passa no fundo dos corações; lê o pensamento e percebe a sinceridade. Julgá-lo, pois mais sensível à forma que ao fundo é rebaixá-lo.” (Evangelho Segundo o Espiritismo: 394).  

Também nesta outra passagem a oposição pensamento/coração é desenvolvida:  

“Isso independe das preces regulares da manhã e da noite e dos dias consagrados. Como o vedes, a prece pode ser de todos os instantes, sem nenhuma interrupção acarretar aos vossos trabalhos. Dita assim, ela, ao contrário, os santifica. Tende como certo que um só desses pensamentos, se partir do coração, é mais ouvido pelo vosso Pai celestial do que as longas orações diatas por hábito, muitas vezes sem causa determinante e às quais apenas maquinalmente vos chama a hora convencional, - V. Monod (Bordéus, 1862)” ( Evangelho Segundo o Espiritismo: 399) 14.

      A  autenticidade mediante à referência ao coração introduz um novo elemento no complexo da prece, ligado à concepção espírita de pessoa.  O coração simboliza, aqui, uma disposição ou atitude de fé genuína que é condição de possibilidade da eficácia das preces. Ou seja, apontapara o uso de uma vontade individual livre não-inteiramente identificada com a racionalidade, no sentido de um “fervor espiritual”. Os kardecistas acreditam que a fé deve ir peri passu com a razão, mas a ausência ou descuido com um dos pólos é perigosa. Assim, a fé sem razão levaria ao fanatismo, e a razão sem fé levaria ao materialismo e ao ateísmo. Na tradição cristã aqui atualizada, a dimensão do coração lembraria a atitude de simplicidade evangélica contra a hipocrisia, a sabedoria contra a ciência sem alma, sendo, portanto, uma instância permanente de endosso, junto com a esfera da caridade, da atitude crítica contra aqueles espíritas concentrados em pesquisas intelectuais.

       Isto coaduna-se, como já discutimos, com a separação espírita de linguagem, que é tida como um modo de comunicação dispensável para os Espíritos, bastando-lhes o   pensamento. A rede de oposições categoriais acionadas (que colocamos sob a rubrica da tensão emblemática Espírito X letra) é também derivada  da oposição hierárquica  pensamento X linguagem - expressão da oposição maior Espírito X matéria - em que todo o veículo lingüístico, como uma muleta da ordem da matéria, é apenas um suporte instrumental para a comunicação do pensamento,  estando em posição englobada e dependente da atuação deste, que lhe confere valor e sentido15.

      A oposição entre improviso X fórmulas decoradas introduz a necessidade de um outro contexto de fórmulas referentes ao enquadramento ou modo de produção desses improvisos verbais. Não se decora uma prece mas, como vimos, exercitam-se balizas verbais e retóricas, bem como a marcação do tempo e da modulação da voz que estruturam a sua forma sonora. Logo, as preces feitas pelos espíritas guardam uma semelhança com as observações sobre a improvisação oral, que remontam aos estudos clássicos de Milman Parry e Albert Lord. O aprendiz deve empregar injunções mnemotécnicas que levem em consideração o tom de voz e as recorrências rítmicas e semânticas que ele observa quando da realização da oração pelos veteranos.  No grupo, a prece de encerramento era feita por qualquer um dos participantes, sempre a pedido do coordenador, sem um agendamento prévio, a fim de estimular essa construção formular de preces improvisadas.   Os principiantes tendiam a fazer preces mais curtas, mas já mantinham a sua estrutura mínima: referência ao tema do estudo, seqüência hierárquica de agradecimentos do maior ao menor, atualização do uso especial de linguagem através de vocábulos compostos incomuns na fala corrente, tom de voz modulado para a oração, emprego da primeira pessoa do plural, o chamado “plural de modéstia”.

       Ainda que a prece não necessite compulsoriamente de palavras, os espíritas consideram-se  eticamente  imbuídos de levar instrução e consolo aos irmãos encarnados e desencarnados mais próximos da matéria. Como os que estão neste estágio de evolução ainda precisam de som, a forma lingüística, a reza em voz alta, também se faz necessária. Não há preces obrigatórias ou horários compulsórios para a sua realização, mas os livros espíritas citados pelos membros do grupo são unânimes em recomendar o despertar e o momento antes de dormir como o mínimo recomendado. A reza pela manhã suplica pela harmonia do dia e a feita à noite, associada à leitura e meditação de trecho do ESP, relaciona-se à crença no descolamento do Espírito do corpo durante o sono, sujeitando a pessoa  a contatos espirituais inusitados e arriscados.

       Registrei também uma certa diferença de práticas e concepções em termos da religiosidade que envolve a prece, com um marcado acento geracional. Enquanto membros mais velhos, como Elvira, tendiam a considerar a prece mais como uma prática codificada, com lugar e horário determinado, os membros mais jovens, em geral não operavam essa segmentação, tendo mais simpatia pela percepção da prece como um estado associado à intuição subjetiva do clima, categorizado pela oposição leve-pesado. Na verdade esses membros mais jovens estavam sobrepondo as duas visões de prece, com uma clara preeminência atribuída à percepção da ubiqüidade da oração, englobando sem suprimir a concepção mais tradicional da prece. Em verdade, essa leitura atualiza a vertente anti-ritualista  do espiritismo, encontrando o seu limite extremo na possibilidade de ser espírita fora dos centros e do próprio movimento espírita,  como algumas vezes levantado por palestrantes, nas atividades de quinta-feira à noite.  Logo, temos um arco de possibilidades entre a inevitável codificação da prece em rituais públicos e práticas privadas, de um lado, e sua assimilação difusa a um estado constante e indiferenciado, de outro.

      A discussão oral sobre a prece levantou um outro ponto, dificilmente sistematizado na literatura doutrinária. Trata-se de um oposição entre uma concepção ético-sacrificial e uma dimensão mágica nas práticas de oração.  A concepção ético-sacrificial corresponde a uma espécie de imperativo categórico da prática religiosa espírita: há um dever incondicional de dirigir-se e submeter-se ao plano espiritual superior,  sem esperar privilégios em termos de bençãos ou favorecimentos. De outra parte, há também um elemento sacrificial nesta dimensão. Na prece, como em outras atividades, desenvolve-se uma concepção nativa de sacrifício ou diminuição da individualidade do médium como condição para a conexão reverente com as forças do alto. No entanto, os argumentos apresentados sobre a eficácia da prece apontam para  disposições  corporais e espirituais presentes também nas diversas atividades mediúnicas: qual a atitude mental adequada, como a respiração deve ser conduzida, se há necessidade ou não da voz, etc. Esta fusão da das dimensões valorativas, expressivas e técnicas  particularizam e instrumentalizam a prece segundo as finalidades daquele que ora, relativizando a universalidade da primeira concepção e introduzindo a dimensão mágica na reflexão dos informantes, ainda que não explicitamente nomeada. Sendo o contato e a influência dos Espíritos um dado permanente em sua visão de mundo e noção de pessoa, a prece necessariamente levará em conta a percepção de uma conjuntura relacional de contatos espirituais, mas os cursos de ação poderão ir tanto no sentido de uma aceitação evangelizadora de todos esses contatos ou então do emprego técnico da oração para afastar essas influências. Nesse sentido, a narrativa de Elvira sobre a enfermidade causada pela diminuição do volume das preces é exemplar desta dimensão mágica,  bem como das ambigüidades da concepção de prece para os espíritas16.

      Por fim, o complexo da prece pode ser aproximado de uma lógica situacional que enfatiza aspectos diferenciados no molde abrangente e flexível de seu sistema de crenças. Isto permite que a prática obrigatória da prece em suas diversas dimensões seja conduzida em forma dialógica, mais próxima da visão de “autenticidade”,  ligada a sua radicação na esfera semântica do coração, a qual atualiza a tensão entre pensamento e linguagem através do dilema sempre presente entre codificação X estado e da conseqüente necessidade de uma acordo entre os termos nas situações de performance experimentadas diariamente pelos informantes. A dimensão relacional da noção de pessoa espírita impõe, em segundo lugar, uma dupla possibilidade de uso da prece. Condicionada pelo gerenciamento situacional das relações homens-Espíritos, há uma tensão entre uma forma obrigatória, que colocamos sob a rubrica de ético-sacrificial, a qual  ritualiza e repõe as ligações de subordinação do fiel às forças superiores, e outra, que denominamos mágica, caracterizada pela  manipulação técnica da prece, a fim de afastar contatos espirituais indesejados17. 

c) A construção do diálogo, da leitura e da oratória entre os espíritas 

      O debate no grupo ocorria pela leitura oral do Livro dos Espíritos, sendo examinado e discutido parágrafo a parágrafo. Um colega lia a passagem e o coordenador inquiria se ele, ou outra pessoa desejava comentar o trecho. De qualquer forma, Ronaldo sempre retomava a palavra buscando a generalização, ainda que ela não necessariamente dissesse respeito à análise do trecho. O que se estabeleceria não era  uma  exegese linear, como se faz no meio acadêmico.  Cada vez que se abrisse o debate, deveria se obter alguma conclusão, assimilada à noção de ensinamento. Por exemplo, uma das leituras, na Introdução do LE,  versava sobre a oposição dos cientistas ao espiritismo.  O coordenador iniciou o debate afirmando que há verdades relativas no texto pois ele foi escrito há mais de cem anos e há coisas que mesmo os Espíritos da época não tinham condições de entender. Após um breve debate no grupo sobre as relações entre ciência e espiritismo, o coordenador pediu para lermos novamente uma frase que falava em sociedades na espiritualidade superior. A frase repetida era 

“No mundo dos Espíritos também há uma sociedade boa e uma sociedade má; dignem-se, os que daquele modo se pronunciam, de estudar o que se passa entre os Espíritos de escol e se convencerão de que a cidade celeste não contém apenas a escória popular.”(LE: 34). 

      Pela leitura que eu havia feito da parte 11 da Introdução, concluí que se tratava de uma resposta a determinadas objeções, como corolário de uma argumento maior, a alegação que o espiritismo não pertence à ciência ordinária mas, comtianamente tratar-se-ia de uma ciência situada num patamar superior. A objeção dizia que só os Espíritos inferiores ou grosseiros acorreriam às sessões espíritas e a resposta de Kardec era que não se pode julgar o todo pela parte.

       Para o grupo, outras implicações deveriam ser tiradas da frase. Do que eu julgava ser um argumento comtiano o coordenador inferiu platônicamente que  

“Nosso mundo é uma cópia pobre do que ocorre na espiritualidade superior, tanto em suas faixas mais elevados quanto nos setores mais baixos, que também são organizados. Ambos atuam sobre nós em equipes (gangues, fortalezas). Na espiritualidade inferior há equipes que se chamam a si próprios de justiceiros, eles atuam em todo o globo, especialmente sobre aquelas pessoas com quem eles supõem ter dívidas com eles, obsessionando-os. Há as equipes de Espíritos evoluídos que controlam a liberdade dos menos evoluídos(atrasados) mas respeitam o seu livre arbítrio, mesmo naqueles casos em que eles atuam por Obsessão aos encarnados. Não há interferência direta por isso e por que o crescimento geralmente se dá pela dor e pelo sofrimento, mas depois até agradecemos por isso. 

Uma senhora então interviu dizendo que 

A gente vem para ser testado. Tudo está programado pela evolução, para ver como tu agirás para evoluir. 

Ao que o coordenador complementou:  

É, a gente vem para ser testado - os obstáculos têm origem em nossas vidas passadas ou nessa vida. Depois dos 20 anos, já começamos a ter dívidas acumuladas desta vida. Depois dos 40 ou 50 anos, já começamos a resgatar dívidas acumuladas nesta vida (José Luiz teoriza bastante sobre a aplicação do espiritismo). A gente vem para ser testado. Nós nos programamos para sermos vencedores.   

      De meu ponto de vista tipicamente “acadêmico”, o estilo de argumentação na Introdução do Livro dos Espíritos não se coadunava com o comentário isolado de cada parágrafo (ou de pequeno conjunto de parágrafos). Na perspectiva do grupo isso era diferente. Não que o debate estivesse desligado de uma ordenação referida ao texto. Pressupunha-se uma continuidade metódica na leitura da obra de Kardec, bem como a incorporação progressiva das verdades contidas no texto. Assim, na semana seguinte, a leitura deveria iniciar exatamente do ponto onde se havia parado na semana anterior.  Mas não se tratava de uma incorporação linear de conteúdos. A leitura no grupo servia de um pretexto para a discussão, que nunca deveria ser restrita ao texto: este oportunizava o debate, mas não o circunscrevia.

       O que é mais valorizado no exercício do comentário é a extração de um ensinamento doutrinário em cada passagem lida, mesmo que o modo de extração seja divergente da maneira acadêmica de ler. A regra implícita de exegese  no grupo de estudos pode ser assim enunciada: sempre procurar totalizar, extrair um ensinamento, mesmo que a partir de fragmentos de textos.  Numa visão de mundo que não admite a existência do acaso, não há fragmentos reais, eles sempre podem ser hermeneuticamente recuperados por uma teleologia espiritual implícita que cabe ao exegeta desvelar. Ora é a própria concepção espírita de leitura, que salienta o sentido espiritual e alegórico da exegese, conjugada à autoridade depositada na Codificação kardequiana, que explica a relação do grupo com a leitura do Livro dos Espíritos. Um mal entendimento dificilmente emanaria de um defeito intrínseco ao texto, mas sim do leitor, que não teria tido a capacidade ou determinação necessária para lograr êxito na interpretação. O máximo que se salientava era a inadequação tópica de uma ou outra afirmação. Como o coordenador enfatizava,  

como o LE é a doutrina dos Espíritos, mesmo a eles não foi permitido saber tudo e sim aquilo que, de acordo com a sua época e o seu grau de evolução eles poderiam entender.

      A possibilidade de fazer correções no texto, ainda que abrisse uma janela para a crítica histórica da doutrina, não arranhava a crença na predominância de verdades doutrinárias essenciais. Não havendo uma dúvida metódica de fundo, partindo-se do pressuposto de que o essencial estava estabelecido18, simplesmente não fazia sentido insistir numa atitude crítica sistemático com relação ao texto, típica dos céticos e  materialistas. Ao seguir os gestos de leitura inaugurados pelo próprio “Codificador” na exegese do texto bíblico, as possíveis contradições ou incompreensões eram ou recuperadas pela interpretação alegórica ou subsumidas pela ênfase no sentido espiritual, na totalidade ou ensinamento principal presente nas linhas ou entrelinhas do texto. O ensinamento, ou sentido espiritual do texto lido, significa que o conhecimento não se limita ao texto mas é por ele oportunizado, cumprindo o papel de mediador, como numa epifania19. Na concepção espírita de leitura não é apenas um processo intelectual que está em curso, mas um crescimento em que o próprio Espírito está implicado  pela assimilação de conteúdos, mas também pela circulação de vibrações no ambiente e pela troca de experiências realizada no grupo. Como o corpo e a fala, o texto e a leitura acabam sendo também representados como veículos de um “crescimento espiritual” que pressupõe a incorporação de conhecimentos, mas que de modo algum se limitam a isso. Um efeito esperado da concepção de ensinamento, que funde o conhecimento com implicações morais e espirituais, é a regeneração ou reforma íntima do indivíduo20. A mera aquisição de conhecimento, isolada da moralização da conduta, é muito criticada, de onde se pode compreender as repetidas críticas aos “cientistas” e aos “intelectuais” no grupo de estudos, reprovados por não associarem o seu conhecimento a uma moralidade cristã cuja expressão máxima é fornecida pela revelação espírita.

      Essa descrição da leitura espírita infirma tentativas de apreender a vivência e a socialização no espiritismo apenas como incorporação linear de conteúdos expressos nas obras de Kardec, em que pese o seu caráter sistemático e pedagógico. Nos livros “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” há um modelo de exegese literal e racionalista da Bíblia que segue as grandes tendências de crítica textual da época, onde várias passagens menos aceitáveis da Bíblia são lidas como alegorias feitas com propósitos didáticos para o entendimento do público, a serem interpretadas segundo as instruções fornecidas pelos Espíritos. Mas não se trata de uma crítica humana de um texto cujo sentido seria autônomo: é o caráter literal da Terceira Revelação, sua autoria feita em colaboração entre homens e Espíritos divinos, que permite que esta leitura das fontes anteriores seja encarada como alegórica. Atualizando as verdades cristãs, a obra de Kardec cria um cânone inédito para os kardecistas, em que os dogmas não são lidos como tais, mas como o fruto da experiência universal de comunicação mediúnica, desfrutando o status de “revelações conformes à experiência e à razão”. Um cânone que diz respeito não apenas a um corpus doutrinário mas também aos modos consagrados de interpretação dos textos, da sociedade, da natureza e da evolução.

       O grande elo de ligação entre o texto e as diferentes ordens de comentários no debate é a máxima doutrinária, espécie de clichê ou fórmula de múltiplos usos retóricos entre os kardecistas. Trata-se, no entanto, de uma estrutura formular diferente daquela empregada para a improvisação de preces. Enquanto esta pautava-se pela improvisação em torno de um tema, seguindo uma determinada estrutura ritmica e semântica, aqui a fórmula torna-se máxima doutrinária. Não é simples descrever a força ilocucionária das máximas na retórica espírita. Ela é uma espécie de ensinamento condensado, que permite a fixação mnemotécnica da doutrina num corpus de frases  curtas - por exemplo “viemos ao mundo para ser testados” ou “orai e vigiai”, etc. - cumprindo um papel didático, como num sermão ou catequese. Pode-se ter uma apreensão doutrinária em diversos níveis de aprofundamento, mas o conhecimento dessas máximas e suas explicações constituem o repertório mínimo que o espírita incorpora em sua trajetória religiosa. Além disso, a máxima funciona como um sinalizador verbal, que permite o trânsito de planos discursivos do particular para o geral e vice-versa, do texto ao comentário e deste ao exemplo, à narrativa. No grupo de estudos ela está em muitas introduções de falas, como as que sublinhamos acima. Mas em palestras doutrinárias elas podem servir de operadores discursivos, preencher brancos na fala e também servir à guisa de conclusão. Toda a socialização no espiritismo é permeada pelo uso de máximas nas falas, como por exemplo

Viemos ao mundo para ser testados

O nosso mundo é uma cópia pobre do mundo espiritual

É pelo sofrimento que se chega à doutrina espírita 

      O uso de máximas doutrinárias permite, no grupo de estudos, que cada trecho lido possa ser associado a diversos tipos atos discursivos, do comentário específico ao exemplo, incluindo-se diversos tipos de narrativas pessoais e citadas, envolvendo intercâmbios mediúnicos, vidas passadas, méritos e faltas, exemplos de Espíritos missionários, etc. O que importa é a costura dos fragmentos em pequenas totalidades que condensem os princípios fundamentais da doutrina em unidades discursivas menores, daí o seu emprego recorrente.

      Nesse sentido a exegese está subordinada à capacidade de elaborar pequenos discursos com argumentos extraídos de um repertório de máximas, explicações e exemplos que conjuga fontes orais e leituras indicadas, mas afasta-se do padrão de exegese isolado que recupera o sentido literal de um texto por decomposição em unidades mínimas: o que importa na leitura espírita é a recomposição sintética do sentido espiritual  do texto, que remete a um incessante intertexto e à experiência adquirida nas práticas rituais.

      Esse emprego formular e totalizador da linguagem não se restringe ao grupo de estudos ou à prece. Ele é posteriormente usado para a construção de exposições e palestras, em que uma máxima e seguida de uma explicação e de uma conclusão. Tomemos como exemplo a pequena palestra:

Meus irmãos, Antes de nós reencarnarmos, nós, na espiritualidade superior, o corpo físico, do qual nós vamos nos servir durante a presente encarnação, é estudado sobejamente por uma equipe da espiritualidade superior, que nos fornecerá as lições de vida a que todos nós temos direito de acordo com a posição  evolutiva de cada um de nós. Portanto nós recebemos toda a retaguarda possível de Deus, da espiritualidade superior para que nós possamos obter êxito na nossa presente encarnação. Nós então reencarnamos e recebemos o apoio de nossos pais, o amor de nossos pais, o afeto dos nossos amigos, o afeto dos nossos entes queridos, daquelas pessoas que nos sustentam afetivamente, porque, se não fosse aquela afeição a qual nós somos rodeados na nossa existência, nós não teríamos condições de suportar as provas pelas quais nós temos de passar, provas essas que são a colheita que nós fazemos hoje da semente que nós plantamos ontem.

Portanto, nós todos temos as nossas dívidas a ressarcir, mas nós reencarnamos também para evoluir, para adquirir a experiência profundamente  necessária para a nossa evolução moral e espiritual,. Nós recebemos todo o amparo possível e recebemos todas as condições para minorar as provas às quais nós somos submetidos, porque conforme nos ensina a doutrina espírita Deus não quer a morte do pecador, assim com disse Jesus “misericórdia quero e não sacrifício” e é portanto através do exercício do bem do trabalho intensivo em favor próximo que nós podemos suavizar a nossa dor e nós só podemos suavizá-las na medida em nós passamos a compreender as necessidades do nosso próximo. Que Jesus continue nos abençoando hoje e sempre. 

      Como no grupo de estudos, a fala da palestrante é dividida em pequenos segmentos que usam as máximas, assinaladas em negrito e que conectam as partes do discurso, juntamente com o uso agregado de operadores discursivos como “portanto”, “então”, “conforme nos ensina” ou “assim como disse Jesus”, que complementam e reiteram os ensinamentos, viabilizando um contínuo fluxo da fala durante a palestra. A flexão das sentenças no chamado “plural de modéstia”, o uso da primeira pessoa do plural, também é um dado lingüístico comum ao grupo de estudos e à palestra, juntamente com saudações fraternas, constituindo formas de polidez próprias a essa situação, tudo dentro de um modus operandi que toma a expressão escrita como modelo para a fala. Seguindo esse esquema o palestrante teria a capacidade de discorrer por horas a fio a partir de trechos de livros escolhidos ao acaso. Mas também poderia concluir a qualquer momento, o que nos introduz na segunda característica da inculcação de um habitus oratório no grupo de estudos: o enquadramento da fala ao tempo disponível ou seja, a formação a formação de um timing discursivo

       A adaptação da fala ao tempo disponível, de tão difícil realização nas instâncias sociais mais diversas, como no ambiente acadêmico, nos parlamentos e nos tribunais,  é um fato recorrente no espiritismo kardecista. Se observarmos uma palestra doutrinária seguida de passe, veremos que os palestrantes sempre conseguem manter-se no tempo disponível, dificilmente passarão o limite de horário ou terminarão muito antes do previsto. A rígida observância de horários obriga os falantes a construir uma estratégia de adaptação ao tempo disponível que é aprendida nos grupos de estudo e tem por base  os recursos retóricos acima discutidos. Se é uma palestra planejada:  insistência num repertório de ensinamentos e máximas e uso de uma generalização após a outra, colocando resumidamente todo o conteúdo a ser falado;  expô-lo, na medida do possível em sua totalidade e, ao aproximar-se do final da palestra, terminar recapitulando os pontos principais já enunciados no início da fala. Se é um comentário escolhido “ao acaso”21, funciona a  fórmula do improviso, em que máximas e generalizações vão sendo continuamente costuradas e dissertadas no decorrer do tempo, alimentando um fluxo de discurso constituído não apenas da estrutura tradicional de um “começo-meio-e-fim”, mas de  vários pequenos “começos-meios-e-fins”. Como numa palestra que assisti, o orador disse, ao abrir o ESP, que veio a passagem “Bem aventurados os pobres de Espírito”. O orador começou explicando o significado da expressão e então passou a falar das “dores que nos afligem e que nos levam ao centro espírita”, “do que o espiritismo nos ensina”, que “temos uma missão no mundo”, que “é o nosso livre-arbítrio que decide se vamos estacionar ou não”, que “é o nosso trabalho que vai importar para a evolução”, que “temos dívidas a cumprir mas podemos aliviar o nosso sofrimento”, que “a educação de uma criança é uma responsabilidade que Deus nos confiou”, tudo num encadeamento não-linear com a passagem escolhida. A ordem dos pequenos segmentos do discurso poderia ser alterada sem comprometer o resultado geral. Pequenos discursos discontínuos são costurados por um ritmo oratório e semântico contínuo que permite que aparentes incoerências e ambigüidades no fluxo do discurso sejam percebidas pela audiência como dotadas de uma continuidade semântica maior22. A eficácia simbólica das palestras espíritas deve-se, em grande parte, à sua legibilidade descontínua ou seja, à capacidade dos enunciados das máximas sempre se encaixarem no tema geral escolhido ao acaso,  mas também às múltiplas chances de uma audiência heterogênea identificar-se e construir um sentido geral com pequenos segmentos da palestra, sem a necessidade de tê-la compreendida por inteiro.

       Ao aproximar-se do final do tempo, o expositor relacionará a última conclusão enunciada com o tema principal. Assim, é a estrutura formular oral da retórica espírita, tanto no plano das máximas, quanto nas pequenas generalizações discursivas seqüencialmente encadeadas das palestras, que permite que um improviso - lido na ótica nativa através da categoria inspiração23- obtenha êxito, mantendo-se sempre no tempo disponível.

      O uso dos exemplos na fala dos espíritas nos remete à adaptação de seu saber no sentido da realização de uma exegese do mundo à luz do espiritismo, que opera em dois níveis:  um é o exemplo de caráter mais técnico, que busca estabelecer os princípios aprendidos em narrativas de experiências pessoais que envolvam a mediunidade. O outro é de caráter moral, que relaciona a doutrina espírita com conjunturas políticas, notícias e fatos do cotidiano.

       Assim, o exercício do comentário é freqüentemente entrecortado por narrativas orais exemplares, que infundem a densidade do vivido ao texto lido. Certa vez Ronaldo relatou  que,

numa sessão de desdobramento, uma senhora entrou em contato com um faraó egípcio e seus discípulos, que estavam estacionados há milhares de anos sem evoluir, seguindo-se um trabalho de meses de esclarecimento.

Há, nessas narrativas orais, o estabelecimento de uma circularidade com o  texto lido, como um jogo especular em que o escrito remete à experiência e vice-versa, num trânsito circular incessante através do  debate. Um exemplo pessoal é complementado pela citação de um autor ou por uma história lida. As citações são também complementadas por narrativas pessoais, rebatendo-se em narrativas de colegas, costuradas em citações e narrativas por outros, num diálogo constante. Nesse interdiscurso, não é apenas o estudo ou a aquisição de conhecimentos que está em jogo, mas também a elaboração coletiva da verossimilhança do próprio sistema espírita. 

      Um segundo recurso freqüentemente utilizado é o de ajustamento do espiritismo aos avanços da ciência, como por exemplo na afirmação de que

a descoberta dos cromossomos já estava prevista nos romances de André Luiz.

      A  busca de  “fatos científicos” concordantes com as alegações da doutrina era muito freqüente no grupo, tanto quanto a relação ambivalente com a imagem de cientistas e intelectuais ali atualizada. Outra importante fonte de reflexões comparativas era fornecida pela representação de “natureza” trabalhada nos discursos. A partir do pressuposto de sua “perfeição” e “marca divina” a idéia de natureza era seguidamente usada para denunciar a “corrupção” e lamentar a “irracionalidade” e o “atraso” das condutas humanas. A notícia do índio queimado por jovens em Brasília provocou o seguinte comentário:

Vejam, enquanto a macaca, que é irracional salvou a criança humana, vejam o que esses meninos fizeram com o índio.Às vezes eu me pergunto se nós não somos as criaturas menos evoluídas deste planeta, que nós ainda teremos muitas encarnações para aprender a lição de Jesus ‘amai-vos uns aos outros’. 

O comentário de notícias, comum nos exemplos dos participantes do grupo, instaura o gesto hermenêutico de compartilhar a visão de mundo comum pela progressiva exegese das novas informações. Este trabalho de exegese doutrinária do mundo é fundamental para a constante atualização de seu sistema religioso, em face da necessidade de oferecer respostas aos principais problemas humanos. Cumpre assinalar que essas respostas  colocam em cena a forte dimensão moral que permeia o seu ethos, ao estabelecer oralmente a ligação de seu sistema de valores e representações com o vivido dos membros do grupo, “ressemantizando” o mundo à luz da doutrina espírita. Juntamente com as narrativas mediúnicas, poderíamos caracterizar esse segundo nível como de reflexões morais, compondo o trabalho de interpretação de contextos extratextuais à luz da discussão oportunizada pelos textos lidos.

d) Igualitarismo explícito e hierarquia implícita no grupo

No entanto essa dimensão de narrativas e reflexões morais evidenciava o aspecto de fala hierárquica espírita, fundamentado na assunção valorativa da preeminência do espiritismo sobre as demais religiões e, por conseqüência, dos espíritas sobre as demais pessoas. Isso sempre era um tema polêmico no grupo. Alguns sustentavam que dizer-se espírita nada garantia, assim como conhecer todos os preceitos evangélicos, se estes não fossem aplicados diariamente. Como explicar também a envergadura moral de muitos não-espíritas, de Espíritos missionários, como Gandhi ou Madre Teresa de Calcutá, originários das fileiras de outras religiões ou mesmo de pessoas comuns, conhecidas dos membros do grupo, mais espiritualmente elevados que muitos espíritas? Em alguns momentos levantava-se a questão:  

-E se os nossos governantes fossem espíritas? Será que isso não levaria à solução de muitos problemas?

Outro: - Mas declarar-se espírita não é garantia de nada. O sujeito pode ser de qualquer religião. Quantas barbaridades já se fez em nome da religião. Não é um governante mas é dentro de todos nós que se deve promover a mudança.

Os questionamentos assinalados exibem as notas de uma crítica igualitária da idéia de eleição, pressuposta na fala hierárquica espírita. A superioridade de esclarecimento não teria efeito, na visão de alguns membros do grupo, se não fosse associada uma responsabilização moral maior, com a exigência de um programa de reforma íntima, o que ensejava um outro debate, sobre o sentido desta reforma. No grupo era  atualizada simultaneamente uma visão moral de indivíduo, como agente moral livre e responsável por suas ações e outra, associada, em que prevalece um discurso psicologiante sobre o “interno”, sobre o indivíduo e suas emoções. A reforma íntima era uma importante vertente de elaboração do interno, como na prece, sendo recuperada a na órbita de uma apreciação individualista, que a entronizava como condição de autenticidade das ações externas. Alguns sustentavam a posição do “tudo ou nada”: ou a reforma íntima é integralmente levada a cabo ou infirmada pelos pequenos defeitos. Outros, mais liberais, encaravam-na como meta a ser progressivamente atingida apesar dos pequenos defeitos e retrocessos. Se era estabelecida a superioridade da visão espírita de mundo e a pressuposição da verdade dos conteúdos religiosas das fontes escritas, uma série de lacunas interpretativas eram objeto de polêmicas no interior do grupo, não sendo resolvidas pela citação ou busca no texto de elementos que pudessem resolvê-las. Uma citação ou interpretação explicitamente referida a um texto não funcionava como instância legítima de argumentação para resolver um problema desta natureza, em que pese a grande massa de publicações espíritas que versam sobre os assuntos polêmicos.

       A importância dos posicionamentos pessoais matiza a característica de discussões como esta no grupo de estudos. Ainda que a referência central seja a doutrina espírita e os argumentos invocados devam gravitar à volta deste referencial os enunciados válidos são oriundos de uma incorporação ao saber pessoal das  mais variadas fontes de experiência.  Não está em questão o exame do aprendizado de um conjunto de conteúdos intelectuais mas a capacidade de fundir a doutrina com o vivido do fiel. Nesse sentido, a autoridade da fala decorre  de fatores extra-discursivos - como a credibilidade do falante como médium e trabalhador reconhecido,  sua antigüidade no espiritismo e no próprio grupo- e discursivos,  como a articulação dos enunciados, a clareza de sua exposição e a força de suas razões.

      Por exemplo, um jovem casal, com pouco tempo no grupo tendia a monopolizar a palavra, polarizando em todos os debates. Alguns membros mais antigos do grupo se incomodavam com as falas freqüentes dos dois e uma pergunta lateral que algumas vezes eu ouvia era “quem é ele?” ou então “de papo ele é muito bom, quero ver na prática”, que poderia ser traduzida “como com que direito ele usa a palavra como um interlocutor ratificado dentro deste grupo?”  Sendo o espiritismo um sistema formalmente igualitário, a estruturação hierárquica é implícita, o que se estende ao direito de uso e ao modo de expressão verbal, cabendo aos participantes ter o senso de seu lugar nos grupos de que participam.

      Como nas demais situações no centro espírita, a hierarquia era presente de forma sutil, mas nunca explicitada, por contrariar a ideologia igualitária que permeia este sistema religioso. Nas pegadas de Dumont  (1985, 1992) podemos nos perguntar como se processa essa convivência entre igualitarismo explícito e hierarquia implícita dentro do grupo. Cavalcanti (1983), ao discutir as concepções nativas de indivíduo e pessoa, já havia chamado a atenção para a existência de uma hierarquia de potencial no espiritismo, ao que acrescentei acima o fator da antigüidade. Importante ainda é a coincidência entre hierarquia e responsabilidade no espiritismo: um respeito hierárquico devido a um médium corresponde a uma expectativa e um controle maior sobre o desempenho de sua função. Como anteriormente colocado, as posições hierárquicas no espiritismo sobrepõem  a liderança carismática (implícita na hierarquia de potencial entre os médiuns) e a liderança burocrática (em que o que importa é a responsabilidade funcional do cargo), resultante da tensão entre a valorização diferencial dos médiuns e a ênfase igualitária da organização.

       No caso da fala hierárquica dentro do espiritismo, temos uma referência a todo um sistema de pensamento hierarquizado pela oposição entre plano espiritual e plano material. Como sabemos a doutrina espírita é concebida como a doutrina dos Espíritos, onde a teologia que a fundamenta é vista como uma espécie de emanação intrínseca de forças superiores ou simplesmente como codificação da ordem natural das  coisas. Estando a crítica racional prevista no próprio sistema através da noção de livre-arbítrio, é normal que debates em torno da superioridade intrínseca do sistema espírita sejam transpostos para uma hierarquização das diferenças sociais como diferenças de evolução e que as diferenças  intelectuais entre os homens como uma questão de aceitação da revelação kardecista. No entanto, uma conseqüência desta dimensão hierárquica é a dificuldade de assimilação da superioridade moral e espiritual de um não-espírita face a um espírita, sempre compensada, em outro plano, pela referida desigualdade de esclarecimentos.

Conclusão 

No âmbito da leitura e da conversa, podemos retomar a proposição da dimensão hierárquica implícita à luz da organização discursiva do grupo. A leitura é concebida como uma atividade de múltiplos fins, sempre sujeita à relação englobante com uma vivência na  totalidade da doutrina espírita e não de forma segmentada como  “aquisição de conhecimentos”. A leitura e interpretação oral no grupo de estudos é parte, assim de um conjunto de exercícios espirituais que ali não se esgota mas deve estar sempre referida à atualização cotidiana da identidade religiosa de seus membros, dentro e fora do centro espírita. Englobada por esses valores, é compreensível que a exegese não seja linear, mas siga uma espécie de coerência multívoca, produto da relação entre o texto lido e as diferentes ligações pessoais estabelecedidas entre fragmento lido e conjunto pressuposto, de forma bem diferente da leitura analítico-referencial praticada nos quadros universitários.  Em outras palavras, embora formalmente o estudo seja produto de um trabalho da razão, esta não funciona bem, na visão espírita, se não estiver amparada por uma “inspiração espiritual” ou seja, uma conexão bem estabelecida e equilibrada com as forças espirituais supostas como presentes a qualquer situação humana. É essa “inspiração espiritual” mais a relação de autoridade entre os diferentes participantes que garante uma coerência, em última instância, a qualquer rumo que um debate possa tomar no grupo de estudos.

      Ora, essa afirmação simultânea da dependência e do livre-arbítrio no espiritismo (para retormarmos os termos da discussão de Cavalcanti, 1983) leva ao paradoxo de uma valorização ambígua e condicional do intelecto no espiritismo. Sede simbólica do conhecimento e das decisões individuais ela está englobada pelo imperativo maior de progresso moral, com a conseqüente introdução de um anti-intelectualismo num sistema que tanto valoriza o estudo e o conhecimento.

         Deste modo, a leitura e a conversa, no grupo de estudos, salientam um disciplinamento pela forma e pela referência a um conteúdo doutrinário geral, levando em consideração a criação de uma competência, de um hábitus lingüístico de falante espírita. Neste habitus, a conjugação verbal de um discurso descontínuo com um ritmo contínuo, fundamental nas palestras de trechos lidos ao acaso baseia-se na crença na subordinação do orador a um plano espiritual que inspirará suas palavras. Nesta, o enquadramento das formas verbais  pressupõe uma certa relação circular e subordinada com as formas escritas e  literárias, onde o interdiscurso verbal fundamenta-se no intertexto literário.

       A leitura espírita, de certo modo remete à sedimentação doutrinária operada na literatura,  que realiza um incessante exercício de comentário e reiteração dos principais temas e dogmas do kardecismo (cf. Lewgoy, 1998). Além de remeterem uns aos outros, os textos espíritas têm uma característica de redundância, funcionam sempre como chaves para a totalidade, resumem, sintetizam e recapitulam os pontos principais do sistema. Numa tradição iniciada pelo próprio Allan Kardec, eles podem ser lidos em diversos níveis de aprofundamento,  com propósitos claramente didáticos, desde o manual de iniciação do leigo até o texto mais especializado e especulativo destinado aos iniciados. A condensação, junto com a inserção do espiritismo na tradição cristã através das genealogias espirituais, fundamenta a sua eficácia simbólica através da uma elasticidade semântica de seu discurso,  sempre adaptável às finalidades pragmáticas do auditório. Esta elasticidade semântica do discurso espírita permite, desde a retomada da inspiração bíblica do Novo Testamento, onde os espíritas podem resumir todo o sentido de sua doutrina na citação “ama a teu próximo como a ti mesmo”,  até  discursos altamente especializados, destinados a um público restrito.

       Já a fala do grupo de estudos é uma fala de convertidos, mais “ontológica” do que “dialógica”, para retomarmos a distinção que Jonathan Boyarin (1993) faz entre o Novo e o Antigo Testamento. Estuda-se e discute-se em grupo não para aceitar ou refutar a doutrina, mas para poder prosseguir o trabalho de proselitismo, que tem no conhecimento uma dimensão essencial.  É justamente o conhecimento da doutrina como um todo coerente, aliás facilitada pela sua capacidade de ser apreendida em  poucas máximas, um dos principais fatores de atração do espiritismo, viabilizando diversos graus de adesão e engajamento intelectual por parte de seu público.

BIBLIOGRAFIA 

1 - Obras não-espíritas 

AUBRÉE, Marion. “De la histoire au mythe. La dinamique des romans spirites au Brésil”: In LAPLANTINE, François et alli. Le défi magique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994.

BARTHES, Roland et alli. Lo Verossímil. Buenos Aires: Ed. Tempo Contemporâneo, 1970

BOURDIEU, Pierre. “O campo intelectual: um mundo à parte”. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense 1991.

BORELLI, Silvia. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massas no Brasil. São Paulo: FAPESP, 1996.

BOYARIN. Jonathan (org.). The ethnography of reading. Berkeley: University of California Press, 1993.

CAMARGO, Cândido Procópio.  Kardecismo e umbanda: uma interpretação sociológica. São Paulo: Livraria Pioneira,1961

CAVALCANTI, Maria Laura. O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

CAVALCANTI,Maria Laura. O que é espiritismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.

CHARTIER, Roger(org.). Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.

DAMAZIO, Sylvia. Da elite ao povo: advento e expansão do espiritismo no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

DANTAS, Beatriz Góes. Vovó nagô e papai branco. Petrópolis: Vozes, 1988.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. . São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. “O culto do eu no templo da Razão”. In: Três ensaios sobre pessoa e modernidade. Rio de Janeiro, Museu Nacional, 1983.

DUARTE, Luiz Fernando Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro, Zahar, 1986.

DUMONT, Louis. O individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

DUMONT, Louis. Homo hierarquicus. São Paulo: EDUSP, 1992

GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos : uma história da condenação e da legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1994.

GOODY, Jack. A lógica da escrita e a organização do sociedade. Lisboa: Ed. 70, 1987

GOODY, Jack. Domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença, 1988.

HAVELOCK, Eric. A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1996.

HAVELOCK, Eric. A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996b.

HAVELOCK, Eric. Preface to Plato. Cambridge:  Harvard University Press, 1963.

KILANI, Mondher. “Que de hau : le débat autour de l’Essai sur le don et la construction de l’object en anthropologie.” In: ADAM, Jean-Michel;  BOREL, Marie-Jeanne;

KLOPPENBURG, Boaventura. O espiritismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1960.

LAPLANTINE, François & AUBRÉE, Marion.  La table, livre et les esprits: naissance, évolution et atualité du mouvement social spirite entre France et Brésil. Paris: J.C.Lattès, 1990.

LEWGOY, Bernardo. “A antropologia pós-moderna e a produção literária espírita.” Revista Horizontes Antropológicos / UFRGS. IFCH. Programa de Pós-Gradução em Antropologia Social.  Porto Alegre: PPGAS, 1998.

MACHADO, Ubiratan. Os intelectuais e o espiritismo. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1983.

MANGUEL , Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

MARCUS, George & FISCHER, Michael. Anthropology as cultural critique. Chicago, University of Chicago Press, 1986.

OLSON, David. O mundo no papel. Implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997.

OLSON, David  & TORRENCE, Nancy. Cultura escrita e oralidade. São Paulo: Ática, 1995.

ONG, Walter. Orality and Literacy: the technologizing of the word. Nova York:  Methuen & Co.,1982.

PEIRANO, Mariza. Uma antropologia no plural. Brasília: UNB, 1992.

PIERUCCI, Antônio Flávio & PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil. São Paulo: HUCITEC, 1996.

REIMÃO, Sandra. O mercado editorial brasileiro. São Paulo: FAPESP, 1996.

RIBEIRO, Branca Telles & GARCEZ, Pedro (orgs.). Sociolingüística interacional. Porto Alegre: AGE, 1998.

SOUTO MAIOR, Marcel. As vidas de Chico Xavier. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

SPINA Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ática, 1982.

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos?   São Paulo: Brasiliense, 1982.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. 

2 - Obras espíritas

CONAN DOYLE, Sir Arthur. História do espiritismo.  São Paulo: Pensamento, 1992.

KARDEC, Allan. A gênese: os milagres e as predições segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1982.

KARDEC, Allan. O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1984.

KARDEC, Allan. O Livro dos espíritos. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1991.

KARDEC, Allan. O Livro dos médiuns. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1991.

MAYRINZEK DE CARVALHO, Vera Lúcia.  Violetas na janela. São Paulo: Petit, 1993.

MIRANDA, Hermínio. Diálogo com as sombras. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1976.

PEREIRA, Yvonne. Devassando o invisível. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1963.

PEREIRA, Yvonne. Recordações da mediunidade. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1984.

PIRES, Clóvis. Cinqüenta anos de Parnaso. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1982.

SCHUBERT, Sueli Caldas. Testemunhos de Chico Xavier. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1986.

TIMPONI, Miguel. A psicografia ante os tribunais. Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1985.

TOLEDO, Wenefredo. Passes e curas espirituais. São Paulo: Pensamento, 1993.

VIEIRA, Waldo. Conduta espírita (pelo espírito André Luiz). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1960.

WANTUIL, Zeus & THIESEN, Francisco. Allan Kardec. Grandes espíritas do Brasil. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1990.

WANTUIL, Zeus. Grandes espíritas do Brasil. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1976.

WORM, Fernando. A ponte: diálogos com Chico Xavier/Emmanuel. São Paulo: LAKE, 1992.

XAVIER, Francisco Cândido& VIEIRA, Waldo Desobssessão. (pelo espírito André Luiz). Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1969.

XAVIER, Francisco Cândido. Brasil, coração do mundo Pátria do Evangelho (pelo espírito Humberto de Campos). Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1984.

XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar (pelo espírito André Luiz). Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1984.

XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de Além-Túmulo. (vários espíritos). Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1991. 
 

***

Bernardo Lewgoy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Doutorando em Antropologia Social pela USP
E-mail:blewgoy@nutecnet.com.br

Pesquisa desenvolvida sob a orientação da Profª Drª Paula Montero junto ao Curso de Pós-Graduação em Sociologia/USP.