Etnografia da leitura e da fala num grupo de estudos espírita
Bernardo Lewgoy - UFRGS, USP - Trabalho apresentado no seminário temático "Religião e Mídia". VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. São Paulo, setembro de 1998.
Introdução
Esta
comunicação baseia-se em minha pesquisa sobre oralidade e escrita no
espiritismo kardecista. Partindo da hipótese da centralidade da escrita
e da leitura de uma determinada literatura religiosa própria na socialização
dos espíritas, busco aqui interpretar a imbricação entre texto, leitura
e discurso num grupo de estudos, freqüentado durante um ano num
importante centro espírita em Porto Alegre. O grupo é fundamental na
formação da identidade social dos espíritas em dois aspectos: em primeiro
lugar por demarcar uma filiação a redes que unificam-se emblematicamente
pelo posicionamento em certas questões de interpretação doutrinária.
Em segundo lugar por ser uma das instâncias de construção do expositor
espírita, a qual se realiza, de um lado, através do exercício de uma
relação muito específica com a leitura de textos e, de outro, com a
prática de articulação de discursos com a ajuda de fórmulas retiradas
de um repertório próprio. Assim tentarei mostrar que a “fala espírita”
é sempre pautada pela preeminência da dimensão letrada ou seja, trata-se
de uma oralidade sustentada por textos.
O
eixo de indagações aqui desenvolvido relaciona-se
à inserção da “temática da oralidade e da escrita” (Olson,1997;
Ong,1982; Goody,1982; Havelock,
1996) no universo religioso e o modo de abordagem segue a inspiração
da chamada “etnografia da leitura” (Boyarin, 1993) espécie de discussão
que apresenta uma importante interface com a “etnografia da fala”) e
com a apropriação da teoria dos atos de fala na reflexão antropológica.
Em
que pese a importância geral das relações entre oralidade e escrita,
fala e leitura para o estudo das religiões em geral, a transposição
dessa discussão para o espiritismo justifica-se pela ênfase que
ele historicamente reserva aos livros (sagrados, revelados, psicografados,
etc.), à leitura, à oratória e à fala. De modo que a socialização do
neófito neste espaço, seja pesquisador ou simplesmente um iniciado,
implica num aprendizado que passa pela interação e pela leitura1.
I
- Assim, proponho que há, para cada trajetória individual no espiritismo,
uma espécie de interação recíproca entre a assimilação de uma autoridade
textual legada pela tradição e as formas de discurso oral atualizadas
nas diferentes situações rituais do centro, esquematicamente divididas
em três: palestras, contatos mediúnicos e discussões no grupo de estudos.
Todos os momentos caracterizam-se pela interação entre texto e fala,
variando na ênfase relativa de cada fator segundo a situação. Privilegio
aqui a descrição e análise do grupo de estudos por ser uma instância
fundamental de constituição da identidade espírita, por inserir a pessoa
dentro do movimento e por ser o principal espaço de aprendizado das
formas de leitura e de fala no kardecismo.
II
– Há dois níveis que podem
ser distinguidos: uma observação das situações onde as práticas de leitura
estejam presentes, e a pergunta pela existência de uma leitura espírita,
de um conjunto de protocolos que a individualizem. Nesse sentido, trabalharemos
com a hipótese de que a leitura e a interpretação oral no grupo
de estudos espírita tem uma lógica que não se esgota em nossa visão
segmentada de leitura mas está associada ao ethos do grupo, à atualização
cotidiana da identidade religiosa de seus membros, dentro e fora do
centro espírita, a ideais de formação do expositor espírita e,
finalmente , à cosmologia e às práticas de espiritualização, onde
a exegese e o comentário são parte englobada de um complexo maior. Com
relação à forma de exegese dos textos no grupo de estudos observo que
não é seguido o padrão analítico-referencial (cartesianamente, decomposição
analítica em unidades mínimas constituintes) mas sim a regra da exigência
de totalização e produção de sentido, mesmo que a partir de fragmentos:
os comentários de textos decorrem de um habitus, de um princípio que
permite elaborar improvisações orais eficazes adequadas a um timing
e um público. Esse habitus leva em consideração os conhecimentos espíritas
já incorporados pelo falante mas faz também um uso especial da linguagem
nas situações rituais, onde pode-se identificar fórmulas de estruturação
do discurso. Não importa a passagem ou fragmento de texto disponível,
o espírita é socializado a sempre generalizar em seu comentário, a buscar
as costuras maiores entre os argumentos. Nesse sentido o comentário
oral espírita é permeado por um padrão sintético e totalizador, que
atualiza não um conteúdo imanente de um texto, mas antes os códigos
do grupo através do repertório de cada membro.
III
- O princípio de exigência de totalização coaduna-se com a estratégia
oratória, observada nas palestras dos centros espíritas, dirigidas a
um público maior. Na análise das palestras trabalha-se aqui com a hipótese
de sua legibilidade descontínua: Devido à forma como os espíritas organizam
os seus discursos, o ouvinte pode engajar-se numa compreensão de parte
de uma palestra sem ter de entendê-la por completo.
O material
aqui discutido é oriundo fundamentalmente de observações etnográficas
que venho desenvolvendo
há alguns anos no movimento espírita de Porto Alegre. Devido à constante
referência à produção escrita no espiritismo e à questão da paridade
epistemológica entre oral e escrito – que desenvolvi alhures, em Lewgoy,
1998 – o uso de fontes escritas espíritas acompanha peri passu as informações
etnográficas, de modo que a trajetória no grupo é também um percursos
de leitura para o pesquisador.
a) Participando
do grupo de estudos: crenças do antropólogo e realidades nativas
Há
uma dificuldade essencial na abordagem do sistema espírita, que deriva
da complexidade dos aspectos que podem ser invocados pelo pesquisador
para produzir uma imagem coerente desta religião. Resumidamente, o espiritismo
kardecista caracteriza-se por ser uma religião de múltiplas entradas,
monopolizado em suas instâncias de legitimidade e poder por grupos letrados
e cujo problema antropológico de análise remete à possível diversidade
das adaptações práticas locais de um conjunto comum de fontes escritas2.
Para
as finalidades de nossa discussão, convém salientar que as indicações
escritas servem de início para este recorte, onde o kardecismo delimita-se
pela referência às obras de Kardec, basicamente O Livro dos Espíritos,
O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, A Gênese e O
Céu e o Inferno, apelidados de o Pentateuco kardequiano3. A denominação
obras básicas abrange os três primeiros títulos do conjunto mas, por
serem consideradas pelos espíritas como formando a base essencial da
Codificação, esta formada pelo conjunto da obra de Kardec. Em
termos empíricos o Livro dos Espíritos funciona como referência básica
de leitura para os grupos de estudos, em conjunto com cartilhas didáticas
preparadas pela federação Espírita Brasileira. Tanto as obras espíritas
como os pesquisadores que se debruçaram sobre o tema assinalam que o
Livro dos Espíritos, assim como o resto da Codificação, é concebido
como um livro revelado pelos Espíritos, contendo não a doutrina de Kardec
mas a doutrina dos Espíritos, o que é de crucial importância para a
compreensão do sistema espírita, alinhando-o na tradição religiosa que
se inspira na referência e leitura de livros sagrados, como a Bíblia
e o Corão4.
Do
ponto de vista etnográfico, o primeiro problema é o do recorte das fronteiras
do grupo. No caso de uma etnografia da leitura no espiritismo,
a delimitação da unidade sob análise não basta: para iniciar-se no grupo,
o pesquisador é ali orientado pelos informantes a ler um conjunto de
obras, sendo assimilado à condição de leigo ou iniciante. Não há um
posto especial ou um terceiro lugar entre o dentro e o fora para quem
deseje fazer observação participante num centro espírita, como freqüentemente
ocorre em trabalhos sobre religiões afro-brasileiras. Há uma hierarquização
estabelecida que presume não tanto a desigualdade de saberes mas a desigualdade
de esclarecimentos entre os espíritas e os não-espíritas. Quando fui
comprar o Livro dos Espíritos pela primeira vez, no posto de venda
de livros da Sociedade Espírita Allan Kardec (a mais antiga sociedade
espírita de Porto Alegre, 1894), um senhor advertiu-me que
eu deveria
comprar as três obras básicas se eu quisesse estudar Kardec, que não
adiantava eu comprar só uma porque elas formavam uma unidade.
Essas orientações
espontâneas são comuns neste ambiente, encaradas como um dever daqueles
que têm mais tempo de espiritismo. Cabe aqui uma primeira observação.
Se a idéia de uma “hierarquia de potencial” (Cavalcanti, 1983) funcionava
como uma instância intelectual de hierarquização neste grupo, o componente
da “antigüidade na doutrina” também era usado pelos informantes como
uma espécie de identificação hierarquizadora complementar, certamente
importante num sistema religioso que tanto valoriza a igualdade entre
os participantes5. Por exemplo, ao questioná-la sobre a palestra doutrinária
proferida, a informante retrucou-me afirmando:
ora quem sou
eu para dar palestra, eu só comentei um trecho do Evangelho
Outra
expressão comum era
sem a pretensão
de saber alguma coisa, é essa a minha convicção dentro dos meus modestos
vinte e oito anos de participação nas hostes do espiritismo.
A afirmação
da despretensão, combinada ao argumento de autoridade “vinte e oito
anos de participação” compõem uma espécie de retórica espírita regida
por um protocolo ou código de humildade, onde diminuir-se é um ato de
polidez verbal. A humildade opera como um valor de múltiplas implicações
na doutrina e na prática espírita. Ela não apenas indica a presença
de uma “atitude cristã”, associada à prática da caridade, como também
viabiliza a atividade mediúnica, por situar o médium numa posição de
dependência e diminuição do eu que favorece a passagem do Espírito comunicante.
De outra parte, a humildade funciona como um recurso da retórica espírita,
espécie de polidez prévia a iniciar qualquer fala que implique um posicionamento
mais personalizado, como que prevenindo um juízo alheio sobre sua arrogância
ou pretensão. No entanto, naquilo que não coloque a individualidade
em jogo não há necessidade deste protocolo, como na orientação espontânea
que recebi na livraria.
O
primeiro informante que entrevistei, intelectual com livros publicados
e bastante prestigiado no movimento espírita - fez questão de
me conceder a entrevista numa pequena sala do centro espírita que freqüentava.
Na entrevista, o professor Álvaro empregou um tom escolar, como se explicasse
a doutrina a um leigo, em que pese ter-lhe verbalizado o meu interesse
sobre a psicografia e a literatura espírita. Como intelectual espírita
com passagem pela academia - mestre em Biologia - Álvaro preocupava-se
em demonstrar ao interlocutor “quão cientificamente estabelecidos estavam
os princípios da doutrina”, assim como o “rigor experimental” que a
presidia. O tom didático, utilizado numa retórica fluente e pausada,
indicava um método de exposição oral ao qual já estava habituado, que
consistia em separar o exposto da trajetória de vida do expositor, sistematizando
a doutrina e demonstrando o seu aspecto empírico. A qualificação do
interlocutor certamente foi levada em conta, dentro de uma lógica de
persuasão acostumada às alternativas excludentes de contestação e aceitação
por parte do público. Por mais que explicasse minha condição de antropólogo,
os informantes sempre interpretaram minha pesquisa abstraindo o estudo
sobre os espíritas e detendo-se no que consideravam um julgamento sobre
a validade de sua doutrina.
Quando
fazia observações na Livraria Espírita Luz e Caridade, a responsável
pela livraria manifestou o desejo de conhecer-me e ao trabalho que realizava.
Marcamos no centro espírita numa terça-feira à tarde, quando se realizaria
uma palestra doutrinária com passes. Carla enfatizou que desejava que
eu lhe entregasse um pequeno texto explicando o meu trabalho.
O
Instituto Espírita Luz e Caridade tem 60 anos de existência, sendo um
dos mais conhecidos e prestigiados da Federação Espírita do Rio Grande
do Sul. Localizado num bairro de classe média da capital gaúcha ele
conta com dois prédios, divididos segundo a finalidade de uso: um é
o departamento de Assistência Social, com creche que atende a cerca
de 100 crianças, atividades de oficina (corte e costura e restauração
de móveis) e organização de eventos beneficentes, como chás. Na parte
traseira do terreno situa-se um auditório com capacidade para mil pessoas
(o qual só funciona eventualmente) sendo por isso freqüentemente requisitado
pela Federação para eventos de grande porte, como os recentes encontros
com Divaldo Franco e Marilusa Vasconcelos, em 1997. Na entrada do terreno,
com cerca de 20 anos encontra-se o prédio do departamento espiritual,
onde se concentram as atividades cotidianas dos freqüentadores da instituição:
palestras, passes, atendimento fraterno, preces e irradiações (públicas),
Desobsessão, grupo de estudos e desenvolvimento mediúnico (privativas).
O térreo conta com uma pequena biblioteca e salas para as atividades
mediúnicas e dos grupos de estudo, que ocorrem em datas e horários semanais
fixos, respeitando a grande ênfase que os espíritas atribuem à pontualidade,
aliás característica generalizada no espiritismo brasileiro. Em quase
todos os dias úteis realizam-se palestras com passes no andar superior
do prédio, onde há um auditório para cerca de duzentas pessoas, que
se acomodam em cadeiras simples de madeira. Nas segundas-feiras transcorrem
os trabalhos de Desobsessão, na parte da tarde. Nas quartas-feiras à
noite realizam-se os trabalhos de desenvolvimento mediúnico. Os dois
grupos de estudo que funcionavam durante meu trabalho de campo ocorriam
simultaneamente nas quintas-feiras às 18:30hs, prolongando-se até minutos
antes das 20:00 hs quando se iniciava a palestra ministrada por convidados,
atividade que invariavelmente lotava o auditório menor. O centro, austero
na aparência dos tons cinza e no despojamento de sua aparência - quadros
de avisos, alguns cartazes, uma estante envidraçada com edições antigas
de livros de Allan Kardec, Gabriel Dellane. Camille Flamarion e Rochester
- em tudo enfatiza a simplicidade do ambiente. Tudo se passa como se
o rico imaginário kardecista sobre a vida no mundo espiritual fosse
um contraponto a essa constante ostentação de austeridade nos
espaços dos centros espíritas.
Após
assistir à palestra e receber o passe, fui conduzido a um outro prédio
onde eles costumavam tomar chá à tarde e conversar informalmente. O
Instituto Espírita Luz e Caridade é dirigido pelo sr. Jader, militar
reformado, tendo como diretor
do departamento espiritual o sr. Alberto, outro militar reformado.
Suas esposas também são ativamente engajadas nas atividades da casa.
De fato, na direção das atividades da casa espírita predominam pessoas
que já não estão sobrecarregadas nem de trabalho doméstico - mulheres
com filhos adultos - e nem trabalhadores da ativa - caso da maioria
dos homens com postos administrativos no centro espírita. Ali fui questionado
sobre a minha pesquisa e, novamente, meus informantes esperavam falas
curtas de minha parte, a partir do que eles iriam localizar minhas inquietações
dentro de um sistema de classificação prévia dos interlocutores. Fui
inquirido não apenas sobre o meu trabalho mas sobre a minha relação
pessoal com o espiritismo, aonde o mero interesse científico se afigurava
pobre como justificativa. Nesses contatos iniciais eu testemunhava uma
relação inversa à curiosidade de meus pares antropólogos sobre minha
escolha de objeto, ainda que a grande questão, para ambos, fosse a da
minha possível identidade espírita. Enquanto para os antropólogos assumir
uma condição de espírita bloquearia a atitude de distanciamento, pervertendo
o desenrolar do trabalho, para os espíritas isso é uma condição para
o bom entendimento da doutrina, na medida em que, segundo eles
a razão não
poderia deslanchar se não andasse de mãos dadas com a fé...
Uma
série de afirmações indiretas foram lançadas durante a conversa, como
uma espécie de teste de minhas posições, especialmente quando falavam
de Chico Xavier e da impossibilidade de uma pessoa razoavelmente esclarecida
não reconhecer a autenticidade de seu trabalho mediúnico. Sabendo de
minha curiosidade em participar de um grupo de estudos e não meramente
testemunhar sessões mediúnicas, foi natural enquadrarem-me na classificação
de simpatizante da doutrina espírita. Como percebi mais tarde, no grupo
se delineava uma contínua expectativa de minha adesão à doutrina, que
é uma categoria nativa freqüentemente utilizada para designar
a conversão ao espiritismo. A idéia de adesão remete à centralidade
da noção de livre-arbítrio no sistema, onde a própria aceitação da doutrina
não pode prescindir do exame racional de seus postulados, ainda que
uma situação de sofrimento ou perda possa ser considerada a motivação
inicial para transpor a entrada de um centro espírita6.
Ao
manifestar o meu desejo de observar um grupo de estudos fui conduzido
à presença do sr. Alberto, um homem na faixa dos cinqüenta anos, militar
aposentado e dirigente do departamento espiritual do centro. Perguntado
sobre a minha formação, disse-lhe que era antropólogo. Sem chance
de dar uma explicação maior sobre o teor do trabalho que desenvolvia,
Alberto sentenciou que “o livro mais importante para eu ler era “A Gênese”,
de Allan Kardec”, que
várias das
coisas que poderiam me interessar estavam desenvolvidas naquele livro.
Para um pesquisador
que mal teve chance de expor o seu trabalho, parecia-me absolutamente
inusitada a indicação, tão precisa a partir de tão poucos elementos.
Mais tarde, vim a compreender que, dentro do kardecismo, todo aquele
que procura o centro, não sendo participante reconhecido do movimento
espírita, é tratado como alguém que ali vai em busca de uma orientação,
dentro do continuum que vai do consolo à instrução. Eu, como antropólogo
não escapava à órbita desse sistema de classificações. Se o que me impelia
a procurar o centro poderia ser o pretexto de uma pesquisa, descartada
a alternativa de ser um adversário da doutrina, restava-me o lugar de
um “espírita em potencial”. Dispondo-me a participar do grupo de estudos,
sobre essa classificação sobrepunham-se critérios hierárquicos de ascendência
sobre a minha pessoa. Ora em diante, eu estava ali para aprender a doutrina
espírita e teria o mesmo tratamento de todos os principiantes, devendo
submeter-me às normas de funcionamento do grupo. Meus informantes alternavam,
assim, curiosidade com relação à pesquisa que eu desenvolvia com ascendência
face à minha posição de neófito, sempre na expectativa de uma adesão,
que nunca confirmei ou neguei.
Fui
encaminhado ao grupo de Andrea, sua esposa, que realiza-se às quintas-feiras,
às 18:30hs. Quando cheguei, entrei numa sala onde vi cerca de dez pessoas
à volta de uma mesa. Expliquei ao coordenador, o que eu estava fazendo
ali, ao que rapidamente ele me interrompeu afirmando que aquele não
era o grupo de Andrea, mas eu poderia ficar ali, se quisesse. Meio constrangido
aceitei o convite e, pelo que em breve eu entenderia, aquela era uma
decisão importante, que eu não tinha a plena liberdade de ficar alternando
entre um grupo e outro. Mais tarde eu compreenderia que os grupos não
se diferenciavam apenas pelo que eu supunha ser a diferença principiantes/adiantados7
mas definiam redes dentro do centro, marcavam identidades, que se processavam
principalmente pela filiação a um certo estilo de interpretação da doutrina
espírita e dedução de suas conseqüências práticas O grupo de que participei
ostentava um tipo de leitura mais “liberalizante”, destacando o cunho
social de algumas posições doutrinárias e, esporadicamente, opunha-se
ao que alguns participantes de seu núcleo principal consideravam o
“conservadorismo” e “visão fechada” do “outro grupo”.
Ainda
que não houvesse homogeneidade de posições, a participação num determinado
grupo de estudos tem uma nítida função identitária no universo espírita.
Pude constatar isto quando Graça (a esposa do diretor do centro) que
participava do “outro grupo” juntou-se a nós para a reunião do grupo
do estudos. Conhecida por sua capacidade de polarizar e assumir posições
bem marcadas no centro, sua presença provocou uma viva reação
de Ronaldo, o coordenador: “o que é que a senhora está fazendo aqui?
O seu lugar é no outro grupo.” Mesmo após verbalizado este sentimento
de invasão de uma fronteira entre os grupos, Graça permaneceu na sessão
e Ronaldo terminou por provocar um debate onde se delimitaram suas diferenças,
por intermédio da política. A questão era sobre a maturidade do povo
brasileiro para tomar as suas decisões e a confiança que se deveria
depositar nos seus governantes. Graça manifestou-se afirmando que “quando
o povo, tal como uma criança, não está maduro e tenta assim mesmo agir,
a situação acaba numa bagunça, numa desordem; daí porque era necessário
um governante com mão firme, como se fosse um pai severo, que tomasse
para si a responsabilidade de tomar decisões para o bem daquele povo”.
A fala, identificada com a “simpatia pelo autoritarismo”, chocou aos
membros do grupo politicamente mais “à esquerda” e iniciou-se um debate
acirrado, em que a própria existência de um carma coletivo era invocada
para interpretar a conjuntura brasileira8. Sem deixar de reconhecer
o interesse implícito do conteúdo do debate, importa ressaltar que,
provocado pelo diretor do grupo, ele serviu para explicitar e marcar
diferenças para os participantes, atualizando a função identitária nos
três planos discutidos em Duarte (1986), emblemática, contrastiva e
valorativa. Emblemática, por servir a finalidades de identificação dentro
do centro espírita; contrastivo pelo mútuo jogo de diferenças
entre os grupos atualizados nesta pertença em que a diferença em relação
ao outro ajuda a demarcar a identidade social e, finalmente, valorativo
pela filiação a uma determinada exegese da doutrina espírita, onde a
ênfase diferencial de determinadas fontes escritas, mais especificamente
o que vale enquanto complementação às obras básicas, é tão importante
quanto o estilo de interpretação realizado. Além disso, na relação com
o grupo, que tinha cerca de dois anos de existência, pairava a expectativa
de conseqüências práticas, de um curso de ação a ser tomado pelos participantes
enquanto grupo, sintetizada na proposta recorrente vamos sair para fazer
a caridade.
A
relação com as fontes escritas era outro caminho fundamental de elaboração
da identidade do grupo. Tanto Ronaldo quanto Aldair, seu assistente
- químico, 28 anos de espiritismo - criticavam uma aceitação tida
como “deslumbrada” de Emmanuel (o protetor espiritual de Chico Xavier)
através de alusões ao que consideravam frases esteriotipadas
como “Emmanuel maravilhoso”. Sem negar frontalmente a sua importância,
os coordenadores insistiam que esta atitude de deslumbramento
era contrária ao sentido do espiritismo, por obscurecer o exame racional
das mensagens e induzir ao fanatismo. Os coordenadores alegavam que
muita gente se escorava em clichês, sem conhecer direito nem a obra
de Kardec, nem a de seus sucessores. Tanto que um dia eles disseram,
ao final de uma reunião, “o espiritismo, para nós,
é a obra de Kardec mais as obras de Léon Denis e Gabriel Dellane”, como
que chamando a um reencontro com as fontes escritas originais da doutrina.
O
grupo de estudos era formado por um núcleo fixo de cerca de 10 pessoas
mais umas dez que variavam, geralmente vindas a convite do coordenador,
ocorrendo numa pequena sala à volta de uma mesa. Havia pessoas que sentavam
na mesa e outras que preferiam permanecer numa posição mais periférica,
numa segunda fileira. Isto não era um indicador explícito
de uma situação de hierarquia, ainda que os informantes mais conceituados
no centro geralmente se sentassem à mesa. Indicava, antes, uma disposição
de intervir no debate9.
Alguns acompanhavam atentamente o texto e outros ficavam na típica postura
espírita de concentração, os olhos fechados, a testa franzida, a cabeça
levemente arqueada para baixo. O que de início lembrava-me uma preparação
para uma incorporação ou um estado de prece era fundamentalmente uma
apreensão auditiva das falas da reunião, empregando técnicas corporais
oriundas do domínio do transe, sem deixar de guardar relações a atitude
de prece ou concentração para o trabalho mediúnico. Tanto é que os participantes
que estivessem nesse estado não eram interrompidos ou solicitados a
falar pelos demais, enquanto assim permanecessem. O estado de espiritualização
presumida - que pode ser de prece, concentração, meditação ou transe
mediúnico é, em geral, respeitado e resguardado de interferências
externas não apenas por indicar uma situação valorizada de contato espiritual,
ainda que o grupo de estudos não seja o espaço adequado do transe. Os
espíritas acreditam que uma interrupção brusca de situações de concentração
ou transe pode acarretar prejuízos físicos e emocionais ao médium10.
Como em outras situações o médium que se concentra pode estar também
objetivando a manutenção de vibrações positivas para o bom andamento
da reunião. A prece , no sistema espírita, é associada a uma interlocução
com o alto: portanto, aquele que se encontra num estado visível lido
pelos demais como tal é retirado do circuito de interlocutores ratificáveis,
por se encontrar num “diálogo” de maior relevância.
Dentro
do sistema espírita, toda atividade
ritual demanda uma preparação do ambiente em que encarnados
colaboram com desencarnados para uma faxina espiritual do ambiente,
que acontece antes da sessão, equilibrando os fluidos presentes.
Há sempre necessidade de um timing entre as diversas atividades, a fim
de que esse equilíbrio possa se restabelecer. Por exemplo, o grupo de
estudos - ainda que se realize na mesma sala, não funciona no mesmo
dia da Desobsessão, pois há o risco de que o ambiente não estivesse
ainda limpo das presenças espirituais que ocuparam o espaço, por isso
a necessidade de um tempo razoável entre uma e outra atividade.
O
atividade do grupo de estudos dividia-se em 40 minutos de leitura e
debate de uma passagem do Livro dos Espíritos e pouco mais de uma hora
de leitura e debate de
uma cartilha de uma cartilha didática produzida pela FEB11.Com todas
as atividades espíritas, a pontualidade é extremamente valorizada, ainda
que nem sempre houvesse concordância quanto à sincronia dos relógios.
A função do diretor do grupo não se esgotava no encaminhamento da atividade,
estendendo-se a observações morais, por vezes de reprovação a atrasos,
por vezes comentários sobre os participantes onde uma certa ironia se
fazia presente, o que de início me surpreendeu. Com o tempo compreendi
que isto integrava uma relação de autoridade que deveria ser constantemente
reiterada. Por exemplo, em certa ocasião Ronaldo advertiu Antônia pelo
atraso de quinze minutos. Esta, médium muito respeitada no centro, retrucou
que no relógio dela não havia atraso, que o dele
é que devia estar com algum problema. Como numa sala de aula os participantes
do grupo eram levados a compreender que deviam uma espécie de satisfação
se não comparecessem a alguma sessão. As jocosidades e os deboches,
que percebi entre alguns membros, ainda que não predominassem, serviam
para escoar tensões e aludir a rivalidades, relações de poder e comparações
pessoais no interior do grupo. No espiritismo, ainda que se possa fazer
comentários sobre atitudes que levem a crer no atraso espiritual de
alguém, não se fazem comparações pessoais, não se comenta diretamente
sobre o estágio espiritual de evolução. Trata-se do que chamarei de
restrição à personalização. O humor, é por vezes, o único caminho para
realizar as avaliações mútuas e comparações interpessoais:
O Zeca que
é o mais evoluído de nós, não tem esse problema dos podres do passado.
Trata-se aqui
de uma alusão irônica aos comentários que fluem no centro sobre o comportamento
moral e espiritualidade deste médium. A ironia, ao explicitar comentários
não-autorizados sobre a evolução espiritual de um colega, funciona como
um recurso para inverter no sentido igualitário essa hierarquia presumida,
escoando parte da tensão ligada à convivência de pessoas heterogêneas
através da referência jocosa a suas diferenças.
Isso de problema
de casamentos provacionais, que a maioria das pessoas passa, não
se aplica ao Clóvis e à Antônia, que são o casal vinte aqui do grupo.
O humor dirigido
em relação a este casal, muito valorizado pela percepção da qualidade
de seu vínculo, cumpre a mesma função do exemplo anterior. No entanto,
nem sempre a jocosidade é bem recebida. No segundo caso ela foi interpretada
como sarcasmo, tendo sido rispidamente respondida por Antônia dizendo
“Não é verdade. Nós também temos os nossos problemas”, sem a sinalização
verbal do sorriso, quebrando assim o jogo de fala humorístico que havia
se instaurado.
Num
sistema tão marcado por controles mútuos, incentivo à extrema responsabilização
da expressão e pelo decoro igualitário, é compreensível que, nos debates,
seja estimulada a expressão bem marcada de posições por vezes fortes
e explicitamente antagônicas, como tantas vezes testemunhei. No espiritismo,
como já havia assinalado Cavalcanti, a noção de carma implica na idéia
de um cosmos pleno de significado, de modo que não há ato ou pensamento
humano, por mínimo que seja, sem implicações morais. Assim, a expressão
verbal, por menos importante que pareça, é sobrecarregada de sentido
e, por conseqüência, enfatiza-se muito a responsabilidade individual
com a linguagem. Em segundo lugar, o decoro igualitário
espírita interdita a expressão pública de conflitos e diferenças pessoais
que não trilhem o caminho da divergência fraterna de opiniões:
a expressão verbal é idealmente marcada por um respeito absoluto ao
outro e à sua individualidade. Cumpre assinalar também que, nas condições
de um grupo que sobrepunha laços de amizade e conhecimento prévio e,
tendo ainda uma finalidade identitária, a sustentação permanente
de um ethos de formalidade tornava-se extremamente penosa. Logo, o humor
complementa e compensa as restrições à personalização, elaborando
indiretamente essa área crucial de seu ethos12.
O
esquema da sessão dividia-se em prece de abertura, leitura oral de trecho
do capítulo, comentário do diretor e debate, leitura e debate da cartilha
didática e prece de encerramento, feita sempre por um membro do grupo
a pedido do coordenador. Também as leituras orais são solicitadas pelo
coordenador aos participantes, assim como comentários dos trechos lidos.
Sendo
a função explícita do grupo a formação do orador espírita, a escolha
do coordenador obedecia aos imperativos de envolvimento com o espiritismo,
conhecimento da doutrina e capacidade de liderar e ensinar, mas sobretudo
na ostentação de um modelo de expressão oral a ser seguido pelos demais.
Nesse sentido a oratória do coordenador deve ser clara, pausada e didática,
sendo isto exigido também dos demais participantes. O coordenador faz
as preces de abertura e encerramento (a segunda com a colaboração de
um membro do grupo por ele designado) e introduz os debates, impedindo
a dispersão em conversas paralelas, e organizando o rumo da discussão
quando julgava que havia um desvio do ponto central. Sua fala deve ser
gramaticalmente correta, sem gírias ou maneirismos de linguagem, podendo-se
verificar a presença de um modelo letrado subjacente à sua expressão.
b)
A prece e o uso especial da linguagem
Como
já registrado na literatura13, a prece abre todos os trabalhos espíritas,
sendo concebida como uma relação direta de elevação e contato com a
espiritualidade superior. Convém assinalar que, ainda que haja coletâneas
de preces espíritas desde a obra de Kardec, fornecendo um molde verbal
a ser utilizado nas diferentes situações rituais e cotidianas dos kardecistas,
o que importa é a atitude de dependência e subordinação do fiel às forças
invocadas e menos a repetição de uma reza decorada. Assim, a prece é
realizada a partir de um modelo que implica num timing e numa atitude
lingüística e corporal. A técnica corporal é conhecida: as pessoas fecham
os olhos e se concentram, com as mãos sobre a mesa ou em cima das pernas
junto aos joelhos, enfatizando a exteriorização do ethos de respeito,
humildade, subordinação e elevação. No aspecto do timing ela é variável
mas não são recomendadas preces longas no grupo, perfazendo no máximo
um ou dois minutos. Lingüísticamente, ela é marcada por uma entonação
de súplica, pausada, em voz alta e, na medida em que se está em grupo,
é falada na primeira pessoa do plural, o chamado “plural de modéstia”.
Tendo em vista que o relevo é conferido à atitude são permitidas improvisações
em torno de um molde formular dentro do tema. Se o tema é o estudo deve
haver frases que falem disso na prece, ainda que sem um texto predeterminado.
Também os termos adotados na prece são retirado de um repertório de
máximas e expressões que poderíamos caracterizar como uso especial da
linguagem no espiritismo, onde abundam termos compostos como “campo
energético propício” ou “mercadejávamos” ou “veneranda entidade”. Este
uso especial da linguagem está decalcado numa certa visão literária
e retórica da expressão verbal, marcada por arcaísmos, predileção por
categorias compostas (por vezes de três vocábulos) e o emprego recorrente
de máximas morais durante os atos de fala. No caso da prece há uma certa
ordem hierárquica de mediadores que deve ser respeitada, de acordo com
o plano de evolução espiritual suposto de cada um,
Pedimos a
Deus, nosso pai maior, a Jesus, a Allan Kardec e aos amigos espirituais,
que permitam o sucesso deste momento de meditação e aprendizado, permitindo
que um campo espiritual positivo harmonize as nossas energias, sintonizadas
no amor, na dedicação ao próximo e no desejo de aprender e que somente
Espíritos de luz iluminem os nossos pensamentos neste trabalho tão importante
que agora se inicia.
Em
primeiro lugar, ela é oral e coletiva, mas sempre enunciada numa fala
individual, que pode ser complementada pela recitação grupal de uma
prece decorada como um pai-nosso. Nesse sentido, a prece segue uma estrutura
formular que viabiliza adaptações locais e individuais dentro de um
esquema que todos conhecem e manejam. O espiritismo, dentro do que caracterizaremos
de tensão emblemática entre letra e Espírito, valoriza uma
atitude tida e vista como interior, daí a liberdade estimulada de improvisar
em torno do tema. No entanto, a estrutura formular impõe limites e dirige
a improvisação. A seqüência escalonada de referências é protocolar:
não se admitiria uma elocução do tipo “agradecemos a Deus, aos amigos
espirituais e a Jesus”, por desrespeitar a ordem hierárquica do maior
ao menor.
A
prece é um tema de ampla elaboração na literatura e na fala dos espíritas, guardando diferentes conotações
além da referência comum de uma disposição espiritual de ligação e diálogo
com um plano espiritual superior. Nesse sentido, ela é um importante
pólo de reflexão sobre contatos espirituais, comportando diferentes
usos e crenças subjacentes. Na prece, o fiel estabelece um contato com
o alto mas, dentro da concepção espírita de pessoa (um compósito relacional
de forças e entidades atraídas por afinidades e por carmas comuns) ela
é concebida como irradiadora de uma espécie de força que atrai Espíritos
de diversos tipos. Isto tem por conseqüência a produção contínua de
um imaginário espírita sobre a prece, que tematiza a sua função e aplicações
nas mais variadas circunstâncias . Certa vez Ronaldo afirmou que
em meditação
havia concluído que sempre que orar deve fazer uma dupla oração, pelo
irmão na mesma faixa vibratória, sendo também necessária uma terceira
prece, pelos irmãos obsessores, encarnados ou desencarnados.
O
coordenador salientou também a importância de orar em voz alta, “senão
os Espíritos de baixa evolução, que necessitam de som, não escutariam”.
Abriu-se, então, uma ampla discussão sobre as visões e as práticas de
oração dos membros do grupo. Para alguns, a prece não era apenas
uma invocação ou reza, mas um estado intuitivo a ser mantido vinte e
quatro horas por dia. Para outros, isto era dependente do dia e do estado
espiritual de cada um, de acordo com o clima que se percebe se faz um
tipo de vibração e de prece. Elvira, a participante mais velha do grupo,
cerca de 75 anos, relatou que costuma fazer preces pela manhã e à noite,
antes de dormir. Certa vez ela achou que estava fazendo preces demais
e diminuiu um pouco a quantidade de orações. Elvira relatou então que
ficou doente
por ter baixado a guarda (“com muitas dores no corpo, fechei os olhos
e só via escuridão”) e os inimigos espirituais puderam agir. Teve que
rezar muito mas só conseguiu se desvencilhar da enfermidade com a ajuda
de uma sobrinha, também médium, que lhe ajudou a
fazer uma limpeza na casa.
Outros
membros afirmavam que a prece nem necessita de palavras, é mais um estado,
um pensamento amoroso que se difunde pelo fluido cósmico universal.
Novamente aqui se expressa um conjunto aberto de crenças que caracterizaremos
como complexo da prece. Em primeiro lugar, como o espiritismo coloca
o pensamento numa posição englobante em relação à linguagem, é compreensível
que a prece possa ter eficácia mesmo sem palavras, na forma de um estado,
como os informantes assinalaram, citando o texto “Conduta Espírita”,
de André Luiz-Waldo Vieira:
“Quando possível,
abandonar as fórmulas decoradas e a leitura maquinal de
‘preces prontas’ e viver preferentemente as expressões criadas de improviso,
em plena emotividade, na exaltação da própria fé.
Há diferença
fundamental entre orar e declamar.”(1960 : 96).
A
síntese da concepção espírita da prece, expressa neste texto expressa
a importância do improviso, da emotividade e da inspiração pela
fé, opostas à leitura maquinal, à fórmula decorada e à declamação, estes
tidos como traços de uma oração superficial externa e vazia.
O
complexo de representações sobre a prece já estava sistematizado nas
obras de Allan Kardec, especialmente no capítulo XXVII do ESP “Pedi
e obtereis”. No parágrafo 17, falando de “preces inteligíveis”
Kardec aponta que, ainda que a prece autêntica dependa do pensamento
(que não necessita da linguagem) e do coração (simbolizando a fé autêntica)
ela precisa ser expressa em palavras acessíveis para se difundir aos
outros homens. Sendo inteligível ao ouvinte, ela repõe a questão forma-fundo:
“Deus vê o que se passa no fundo dos corações; lê o pensamento e percebe
a sinceridade. Julgá-lo, pois mais sensível
à forma que ao fundo é rebaixá-lo.” (Evangelho Segundo o Espiritismo:
394).
Também nesta
outra passagem a oposição pensamento/coração é desenvolvida:
“Isso independe
das preces regulares da manhã e da noite e dos dias consagrados. Como
o vedes, a prece pode ser de todos os instantes, sem nenhuma interrupção
acarretar aos vossos trabalhos. Dita assim, ela, ao contrário, os santifica.
Tende como certo que um só desses pensamentos, se partir do coração,
é mais ouvido pelo vosso Pai celestial do que as longas orações diatas
por hábito, muitas vezes sem causa determinante e
às quais apenas maquinalmente vos chama a hora convencional, - V. Monod
(Bordéus, 1862)” ( Evangelho Segundo o Espiritismo: 399)
14.
A
autenticidade mediante à referência ao coração introduz um novo elemento
no complexo da prece, ligado à concepção espírita de pessoa. O
coração simboliza, aqui, uma disposição ou atitude de fé genuína que
é condição de possibilidade da eficácia das preces. Ou seja, apontapara
o uso de uma vontade individual livre não-inteiramente identificada
com a racionalidade, no sentido de um “fervor espiritual”. Os kardecistas
acreditam que a fé deve ir peri passu com a razão, mas a ausência ou
descuido com um dos pólos é perigosa. Assim, a fé sem razão levaria
ao fanatismo, e a razão sem fé levaria ao materialismo e ao ateísmo.
Na tradição cristã aqui atualizada, a dimensão do coração lembraria
a atitude de simplicidade evangélica contra a hipocrisia, a sabedoria
contra a ciência sem alma, sendo, portanto, uma instância permanente
de endosso, junto com a esfera da caridade, da atitude crítica contra
aqueles espíritas concentrados em pesquisas intelectuais.
Isto coaduna-se, como já discutimos, com a separação espírita de linguagem,
que é tida como um modo de comunicação dispensável para os Espíritos,
bastando-lhes o pensamento. A rede de oposições categoriais
acionadas (que colocamos sob a rubrica da tensão emblemática Espírito
X letra) é também derivada da oposição hierárquica pensamento
X linguagem - expressão da oposição maior Espírito X matéria
- em que todo o veículo lingüístico, como uma muleta da ordem da matéria,
é apenas um suporte instrumental para a comunicação do pensamento,
estando em posição englobada e dependente da atuação deste, que lhe
confere valor e sentido15.
A
oposição entre improviso X fórmulas decoradas introduz a necessidade
de um outro contexto de fórmulas referentes ao enquadramento ou modo
de produção desses improvisos verbais. Não se decora uma prece mas,
como vimos, exercitam-se balizas verbais e retóricas, bem como a marcação
do tempo e da modulação da voz que estruturam a sua forma sonora. Logo,
as preces feitas pelos espíritas guardam uma semelhança com as observações
sobre a improvisação oral, que remontam aos estudos clássicos de Milman
Parry e Albert Lord. O aprendiz deve empregar injunções mnemotécnicas
que levem em consideração o tom de voz e as recorrências rítmicas e
semânticas que ele observa quando da realização da oração pelos veteranos.
No grupo, a prece de encerramento era feita por qualquer um dos participantes,
sempre a pedido do coordenador, sem um agendamento prévio, a fim de
estimular essa construção formular de preces improvisadas.
Os principiantes tendiam a fazer preces mais curtas, mas já mantinham
a sua estrutura mínima: referência ao tema do estudo, seqüência hierárquica
de agradecimentos do maior ao menor, atualização do uso especial de
linguagem através de vocábulos compostos incomuns na fala corrente,
tom de voz modulado para a oração, emprego da primeira pessoa do plural,
o chamado “plural de modéstia”.
Ainda
que a prece não necessite compulsoriamente de palavras, os espíritas
consideram-se eticamente imbuídos de levar
instrução e consolo aos irmãos encarnados e desencarnados
mais próximos da matéria. Como os que estão neste estágio de evolução
ainda precisam de som, a forma lingüística, a reza em voz alta, também
se faz necessária. Não há preces obrigatórias ou horários compulsórios
para a sua realização, mas os livros espíritas citados pelos membros
do grupo são unânimes em recomendar o despertar e o momento antes de
dormir como o mínimo recomendado. A reza pela manhã suplica pela harmonia
do dia e a feita à noite, associada à leitura e meditação de trecho
do ESP, relaciona-se à crença no descolamento do Espírito do corpo durante
o sono, sujeitando a pessoa a contatos espirituais inusitados
e arriscados.
Registrei também uma certa diferença de práticas e concepções em termos
da religiosidade que envolve a prece, com um marcado acento geracional.
Enquanto membros mais velhos, como Elvira, tendiam a considerar a prece
mais como uma prática codificada, com lugar e horário determinado, os
membros mais jovens, em geral não operavam essa segmentação, tendo mais
simpatia pela percepção da prece como um estado associado à intuição
subjetiva do clima, categorizado pela oposição leve-pesado.
Na verdade esses membros mais jovens estavam sobrepondo as duas visões
de prece, com uma clara preeminência atribuída à percepção da ubiqüidade
da oração, englobando sem suprimir a concepção mais tradicional da prece.
Em verdade, essa leitura atualiza a vertente anti-ritualista do
espiritismo, encontrando o seu limite extremo na possibilidade de ser
espírita fora dos centros e do próprio movimento espírita, como
algumas vezes levantado por palestrantes, nas atividades de quinta-feira
à noite. Logo, temos um arco de possibilidades entre a inevitável
codificação da prece em rituais públicos e práticas privadas, de um
lado, e sua assimilação difusa a um estado constante e indiferenciado,
de outro.
A
discussão oral sobre a prece levantou um outro ponto, dificilmente sistematizado
na literatura doutrinária. Trata-se de um oposição entre uma concepção
ético-sacrificial e uma dimensão mágica nas práticas de oração.
A concepção ético-sacrificial corresponde a uma espécie de imperativo
categórico da prática religiosa espírita: há um dever incondicional
de dirigir-se e submeter-se ao plano espiritual superior, sem
esperar privilégios em termos de bençãos ou favorecimentos. De outra
parte, há também um elemento sacrificial nesta dimensão. Na prece, como
em outras atividades, desenvolve-se uma concepção nativa de sacrifício
ou diminuição da individualidade do médium como condição para a conexão
reverente com as forças do alto. No entanto, os argumentos apresentados
sobre a eficácia da prece apontam para disposições corporais
e espirituais presentes também nas diversas atividades mediúnicas: qual
a atitude mental adequada, como a respiração deve ser conduzida, se
há necessidade ou não da voz, etc. Esta fusão da das dimensões valorativas,
expressivas e técnicas particularizam e instrumentalizam a prece
segundo as finalidades daquele que ora, relativizando a universalidade
da primeira concepção e introduzindo a dimensão mágica na reflexão dos
informantes, ainda que não explicitamente nomeada. Sendo o contato e
a influência dos Espíritos um dado permanente em sua visão de mundo
e noção de pessoa, a prece necessariamente levará em conta a percepção
de uma conjuntura relacional de contatos espirituais, mas os cursos
de ação poderão ir tanto no sentido de uma aceitação evangelizadora
de todos esses contatos ou então do emprego técnico da oração para afastar
essas influências. Nesse sentido, a narrativa de Elvira sobre a enfermidade
causada pela diminuição do volume das preces é exemplar desta dimensão
mágica, bem como das ambigüidades da concepção de prece para os
espíritas16.
Por
fim, o complexo da prece pode ser aproximado de uma lógica situacional
que enfatiza aspectos diferenciados no molde abrangente e flexível de
seu sistema de crenças. Isto permite que a prática obrigatória da prece
em suas diversas dimensões seja conduzida em forma dialógica, mais próxima
da visão de “autenticidade”, ligada a sua radicação na esfera
semântica do coração, a qual atualiza a tensão entre pensamento e linguagem
através do dilema sempre presente entre codificação X estado e da conseqüente
necessidade de uma acordo entre os termos nas situações de performance
experimentadas diariamente pelos informantes. A dimensão relacional
da noção de pessoa espírita impõe, em segundo lugar, uma dupla possibilidade
de uso da prece. Condicionada pelo gerenciamento situacional das relações
homens-Espíritos, há uma tensão entre uma
forma obrigatória, que colocamos sob a rubrica de ético-sacrificial,
a qual ritualiza e repõe as ligações de subordinação do fiel às
forças superiores, e outra, que denominamos mágica, caracterizada pela
manipulação técnica da prece, a fim de afastar contatos espirituais
indesejados17.
c)
A construção do diálogo, da leitura e da oratória entre os espíritas
O
debate no grupo ocorria pela leitura oral do Livro dos Espíritos, sendo
examinado e discutido parágrafo a parágrafo. Um colega lia a passagem
e o coordenador inquiria se ele, ou outra pessoa desejava comentar o
trecho. De qualquer forma, Ronaldo sempre retomava a palavra buscando
a generalização, ainda que ela não necessariamente dissesse respeito
à análise do trecho. O que se estabeleceria não era uma
exegese linear, como se faz no meio acadêmico. Cada vez que se
abrisse o debate, deveria se obter alguma conclusão, assimilada à noção
de ensinamento. Por exemplo, uma das leituras, na Introdução do LE,
versava sobre a oposição dos cientistas ao espiritismo. O coordenador
iniciou o debate afirmando que há verdades relativas no texto pois ele
foi escrito há mais de cem anos e há coisas que mesmo os Espíritos da
época não tinham condições de entender. Após um breve debate no grupo
sobre as relações entre ciência e espiritismo, o coordenador pediu para
lermos novamente uma frase que falava em sociedades na espiritualidade
superior. A frase repetida era
“No mundo dos
Espíritos também há uma sociedade boa e uma sociedade má; dignem-se,
os que daquele modo se pronunciam, de estudar o que se passa entre os
Espíritos de escol e se convencerão de que a cidade celeste não contém
apenas a escória popular.”(LE: 34).
Pela
leitura que eu havia feito da parte 11 da Introdução, concluí que se
tratava de uma resposta a determinadas objeções, como corolário de uma
argumento maior, a alegação que o espiritismo não pertence à ciência
ordinária mas, comtianamente tratar-se-ia de uma ciência situada num
patamar superior. A objeção dizia que só os Espíritos inferiores ou
grosseiros acorreriam às sessões espíritas e a resposta de Kardec era
que não se pode julgar o todo pela parte.
Para
o grupo, outras implicações deveriam ser tiradas
da frase. Do que eu julgava ser um argumento comtiano o coordenador
inferiu platônicamente que
“Nosso mundo
é uma cópia pobre do que ocorre na espiritualidade superior, tanto em
suas faixas mais elevados quanto nos setores mais baixos, que também
são organizados. Ambos atuam sobre nós em equipes (gangues, fortalezas).
Na espiritualidade inferior há equipes que se chamam a si próprios de
justiceiros, eles atuam em todo o globo, especialmente sobre aquelas
pessoas com quem eles supõem ter dívidas com eles, obsessionando-os.
Há as equipes de Espíritos evoluídos que controlam a liberdade dos menos
evoluídos(atrasados) mas respeitam o seu livre arbítrio, mesmo naqueles
casos em que eles atuam por Obsessão aos encarnados. Não há interferência
direta por isso e por que o crescimento geralmente se dá pela dor e
pelo sofrimento, mas depois até agradecemos por isso.
Uma senhora
então interviu dizendo que
A gente vem
para ser testado. Tudo está programado pela evolução, para ver como
tu agirás para evoluir.
Ao que o coordenador
complementou:
É, a gente
vem para ser testado - os obstáculos têm origem em nossas vidas passadas
ou nessa vida. Depois dos 20 anos, já começamos a ter dívidas acumuladas
desta vida. Depois dos 40 ou 50 anos, já começamos a resgatar dívidas
acumuladas nesta vida (José Luiz teoriza bastante sobre a aplicação
do espiritismo). A gente vem para ser testado. Nós nos programamos para
sermos vencedores.
De
meu ponto de vista tipicamente “acadêmico”, o estilo de argumentação
na Introdução do Livro dos Espíritos não se coadunava com o comentário
isolado de cada parágrafo (ou de pequeno conjunto de parágrafos). Na
perspectiva do grupo isso era diferente. Não que o debate estivesse
desligado de uma ordenação referida ao texto. Pressupunha-se uma continuidade
metódica na leitura da obra de Kardec, bem como a incorporação progressiva
das verdades contidas no texto. Assim, na semana seguinte, a leitura
deveria iniciar exatamente do ponto onde se havia parado na semana anterior.
Mas não se tratava de uma incorporação linear de conteúdos. A leitura
no grupo servia de um pretexto para a discussão, que nunca deveria ser
restrita ao texto: este oportunizava o debate, mas não o circunscrevia.
O
que é mais valorizado no exercício do comentário é a extração de um ensinamento doutrinário em cada passagem
lida, mesmo que o modo de extração seja divergente da maneira acadêmica
de ler. A regra implícita de exegese no grupo de estudos pode
ser assim enunciada: sempre procurar totalizar, extrair um
ensinamento, mesmo que a partir de fragmentos de textos. Numa
visão de mundo que não admite a existência do acaso, não há fragmentos
reais, eles sempre podem ser hermeneuticamente recuperados por uma teleologia
espiritual implícita que cabe ao exegeta desvelar. Ora é a própria concepção
espírita de leitura, que salienta o sentido espiritual e alegórico da
exegese, conjugada à autoridade depositada na Codificação kardequiana,
que explica a relação do grupo com a leitura do Livro dos Espíritos.
Um mal entendimento dificilmente emanaria de um defeito intrínseco ao
texto, mas sim do leitor, que não teria tido a capacidade ou determinação
necessária para lograr êxito na interpretação. O máximo que se salientava
era a inadequação tópica de uma ou outra afirmação. Como o coordenador
enfatizava,
como o LE
é a doutrina dos Espíritos, mesmo a eles não foi permitido saber tudo
e sim aquilo que, de acordo com a sua
época e o seu grau de evolução eles poderiam entender.
A
possibilidade de fazer correções no texto, ainda que abrisse uma janela
para a crítica histórica da doutrina, não arranhava a crença na predominância
de verdades doutrinárias essenciais. Não havendo uma dúvida metódica
de fundo, partindo-se do pressuposto de que o essencial estava estabelecido18,
simplesmente não fazia sentido insistir numa atitude crítica sistemático
com relação ao texto, típica dos céticos e materialistas. Ao seguir
os gestos de leitura inaugurados pelo próprio “Codificador” na exegese
do texto bíblico, as possíveis contradições ou incompreensões eram ou
recuperadas pela interpretação alegórica ou subsumidas pela ênfase no
sentido espiritual, na totalidade ou ensinamento principal presente
nas linhas ou entrelinhas do texto. O ensinamento, ou sentido espiritual
do texto lido, significa que o conhecimento não se limita ao texto mas
é por ele oportunizado, cumprindo o papel de mediador, como numa epifania19.
Na concepção espírita de leitura não é apenas um processo intelectual
que está em curso, mas um crescimento em que o próprio Espírito
está implicado pela assimilação de conteúdos, mas também pela
circulação de vibrações no ambiente
e pela troca de experiências realizada no grupo. Como o corpo e a fala,
o texto e a leitura acabam sendo também representados como veículos
de um “crescimento espiritual” que pressupõe a incorporação de conhecimentos,
mas que de modo algum se limitam a isso. Um efeito esperado da concepção
de ensinamento, que funde o conhecimento com implicações morais e espirituais,
é a regeneração ou reforma íntima do indivíduo20. A mera aquisição de
conhecimento, isolada da moralização da conduta, é muito criticada,
de onde se pode compreender as repetidas críticas aos “cientistas” e
aos “intelectuais” no grupo de estudos, reprovados por não associarem
o seu conhecimento a uma moralidade cristã
cuja expressão máxima é fornecida pela revelação espírita.
Essa
descrição da leitura espírita infirma tentativas de apreender a vivência
e a socialização no espiritismo apenas como incorporação linear de conteúdos
expressos nas obras de Kardec, em que pese o seu caráter sistemático
e pedagógico. Nos livros “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, “A Gênese”
e “O Céu e o Inferno” há um modelo de exegese literal e racionalista
da Bíblia que segue as grandes tendências de crítica textual da época,
onde várias passagens menos aceitáveis da Bíblia são lidas como alegorias
feitas com propósitos didáticos para o entendimento do público, a serem
interpretadas segundo as instruções fornecidas pelos Espíritos. Mas
não se trata de uma crítica humana de um texto cujo sentido seria autônomo:
é o caráter literal da Terceira Revelação, sua autoria feita em colaboração
entre homens e Espíritos divinos, que permite que esta leitura das fontes
anteriores seja encarada como alegórica. Atualizando as verdades cristãs,
a obra de Kardec cria um cânone inédito para os kardecistas, em que
os dogmas não são lidos como tais, mas como o fruto da experiência universal
de comunicação mediúnica, desfrutando o status de “revelações conformes
à experiência e à razão”. Um cânone que diz respeito não apenas a um
corpus doutrinário mas também aos modos consagrados de interpretação
dos textos, da sociedade, da natureza e da evolução.
O
grande elo de ligação entre o texto e as diferentes ordens de comentários
no debate é a máxima doutrinária, espécie de clichê ou fórmula de múltiplos
usos retóricos entre os kardecistas.
Trata-se, no entanto, de uma estrutura formular diferente daquela empregada
para a improvisação de preces. Enquanto esta pautava-se pela improvisação
em torno de um tema, seguindo uma determinada estrutura ritmica e semântica,
aqui a fórmula torna-se máxima doutrinária. Não é simples descrever
a força ilocucionária das máximas na retórica espírita. Ela é uma espécie
de ensinamento condensado, que permite a fixação mnemotécnica da doutrina
num corpus de frases curtas - por exemplo “viemos ao mundo para
ser testados” ou “orai e vigiai”, etc. - cumprindo um papel didático,
como num sermão ou catequese. Pode-se ter uma apreensão doutrinária
em diversos níveis de aprofundamento, mas o conhecimento dessas máximas
e suas explicações constituem o repertório mínimo que o espírita incorpora
em sua trajetória religiosa. Além disso, a máxima funciona como um sinalizador
verbal, que permite o trânsito de planos discursivos do particular para
o geral e vice-versa, do texto ao comentário e deste ao exemplo, à narrativa.
No grupo de estudos ela está em muitas introduções de falas, como as
que sublinhamos acima. Mas em palestras doutrinárias elas podem servir
de operadores discursivos, preencher brancos na fala e também servir
à guisa de conclusão. Toda a socialização no espiritismo é permeada
pelo uso de máximas nas falas, como por exemplo
Viemos ao mundo
para ser testados
O nosso mundo
é uma cópia pobre do mundo espiritual
É pelo sofrimento
que se chega à doutrina espírita
O
uso de máximas doutrinárias permite, no grupo de estudos, que cada trecho
lido possa ser associado a diversos tipos atos discursivos, do comentário
específico ao exemplo, incluindo-se diversos tipos de narrativas pessoais
e citadas, envolvendo intercâmbios mediúnicos, vidas passadas, méritos
e faltas, exemplos de Espíritos missionários, etc. O que importa é a
costura dos fragmentos em pequenas totalidades que condensem os princípios
fundamentais da doutrina em unidades discursivas menores, daí o seu
emprego recorrente.
Nesse
sentido a exegese está subordinada à capacidade de elaborar pequenos
discursos com argumentos extraídos de um repertório de máximas, explicações
e exemplos que conjuga fontes orais e leituras indicadas, mas afasta-se
do padrão de exegese isolado que recupera o sentido literal de um texto
por decomposição em unidades mínimas: o que importa na leitura espírita
é a recomposição sintética do sentido espiritual do texto, que
remete a um incessante intertexto e à experiência adquirida nas práticas
rituais.
Esse
emprego formular e totalizador da linguagem não se restringe ao grupo
de estudos ou à prece. Ele é posteriormente usado para a construção
de exposições e palestras, em que uma máxima e seguida de uma explicação
e de uma conclusão. Tomemos como exemplo a pequena palestra:
Meus irmãos,
Antes de nós reencarnarmos, nós, na espiritualidade superior, o corpo
físico, do qual nós vamos nos servir durante a presente encarnação,
é estudado sobejamente por uma equipe da espiritualidade superior, que
nos fornecerá as lições de vida a que todos nós temos direito de acordo
com a posição evolutiva de cada um de nós. Portanto nós recebemos
toda a retaguarda possível de Deus, da espiritualidade superior para
que nós possamos obter êxito na nossa presente encarnação. Nós então
reencarnamos e recebemos o apoio de nossos pais, o amor de nossos pais,
o afeto dos nossos amigos, o afeto dos nossos entes queridos, daquelas
pessoas que nos sustentam afetivamente, porque, se não fosse aquela
afeição a qual nós somos rodeados na nossa existência,
nós não teríamos condições de suportar as provas pelas quais nós temos
de passar, provas essas que são a colheita que nós fazemos hoje da semente
que nós plantamos ontem.
Portanto, nós
todos temos as nossas dívidas a ressarcir, mas
nós reencarnamos também para evoluir, para adquirir a experiência profundamente
necessária para a nossa evolução moral e espiritual,. Nós recebemos
todo o amparo possível e recebemos todas as condições para minorar as
provas às quais nós somos submetidos, porque conforme nos ensina a doutrina
espírita Deus não quer a morte do pecador, assim com disse Jesus
“misericórdia quero e não sacrifício” e
é portanto através do exercício do bem do trabalho intensivo em favor
próximo que nós podemos suavizar a nossa dor e
nós só podemos suavizá-las na medida em nós passamos a compreender as
necessidades do nosso próximo. Que Jesus continue nos abençoando hoje
e sempre.
Como
no grupo de estudos, a fala da palestrante é dividida em pequenos segmentos
que usam as máximas, assinaladas em negrito e que conectam as partes
do discurso, juntamente com o uso agregado de operadores discursivos
como “portanto”, “então”, “conforme nos ensina” ou “assim como disse
Jesus”, que complementam e reiteram os ensinamentos, viabilizando um
contínuo fluxo da fala durante a palestra. A flexão das sentenças no
chamado “plural de modéstia”, o uso da primeira pessoa do plural, também
é um dado lingüístico comum ao grupo de estudos e à palestra, juntamente
com saudações fraternas, constituindo formas de polidez próprias a essa
situação, tudo dentro de um modus operandi que toma a expressão escrita
como modelo para a fala. Seguindo esse esquema o palestrante teria a
capacidade de discorrer por horas a fio a partir de trechos de livros
escolhidos ao acaso. Mas também poderia concluir a qualquer momento,
o que nos introduz na segunda característica da inculcação de um habitus
oratório no grupo de estudos: o enquadramento da fala ao tempo disponível
ou seja, a formação a formação de um timing discursivo
A
adaptação da fala ao tempo
disponível, de tão difícil realização nas instâncias sociais mais diversas,
como no ambiente acadêmico, nos parlamentos e nos tribunais, é
um fato recorrente no espiritismo kardecista. Se observarmos uma palestra
doutrinária seguida de passe, veremos que os palestrantes sempre conseguem
manter-se no tempo disponível, dificilmente passarão o limite de horário
ou terminarão muito antes do previsto. A rígida observância de horários
obriga os falantes a construir uma estratégia de adaptação ao tempo
disponível que é aprendida nos grupos de estudo e tem por base
os recursos retóricos acima discutidos. Se é uma palestra planejada:
insistência num repertório de ensinamentos e máximas e uso de uma generalização
após a outra, colocando resumidamente todo o conteúdo a ser falado;
expô-lo, na medida do possível em sua totalidade e, ao aproximar-se
do final da palestra, terminar recapitulando os pontos principais já
enunciados no início da fala. Se é um comentário escolhido “ao acaso”21,
funciona a fórmula do improviso, em que máximas e generalizações
vão sendo continuamente costuradas e dissertadas no decorrer do tempo,
alimentando um fluxo de discurso constituído não apenas da estrutura
tradicional de um “começo-meio-e-fim”, mas de vários pequenos
“começos-meios-e-fins”. Como numa palestra que assisti, o orador disse,
ao abrir o ESP, que veio a passagem “Bem aventurados os pobres de Espírito”.
O orador começou explicando o significado da expressão e então passou
a falar das “dores que nos afligem e que nos levam ao centro espírita”,
“do que o espiritismo nos ensina”, que “temos uma missão no mundo”,
que “é o nosso livre-arbítrio que decide se vamos estacionar ou não”,
que “é o nosso trabalho que vai importar para a evolução”, que “temos
dívidas a cumprir mas podemos aliviar o nosso sofrimento”, que “a educação
de uma criança é uma responsabilidade que Deus nos confiou”, tudo num
encadeamento não-linear com a passagem escolhida. A ordem dos pequenos
segmentos do discurso poderia ser alterada sem comprometer o resultado
geral. Pequenos discursos discontínuos são costurados por um ritmo oratório
e semântico contínuo que permite que aparentes incoerências e ambigüidades
no fluxo do discurso sejam percebidas pela audiência como dotadas de
uma continuidade semântica maior22. A eficácia simbólica das palestras
espíritas deve-se, em grande parte, à sua legibilidade descontínua ou
seja, à capacidade dos enunciados das máximas sempre se encaixarem no
tema geral escolhido ao acaso, mas também às múltiplas chances
de uma audiência heterogênea identificar-se e construir um sentido geral
com pequenos segmentos da palestra, sem a necessidade de tê-la compreendida
por inteiro.
Ao aproximar-se do final do tempo, o expositor relacionará a última
conclusão enunciada com o tema principal. Assim, é a estrutura formular
oral da retórica espírita, tanto no plano das máximas, quanto nas pequenas
generalizações discursivas seqüencialmente encadeadas das palestras,
que permite que um improviso - lido na ótica nativa através da categoria
inspiração23- obtenha êxito, mantendo-se sempre no tempo disponível.
O
uso dos exemplos na fala dos espíritas nos remete à adaptação de seu
saber no sentido da realização de uma exegese do mundo à luz do espiritismo,
que opera em dois níveis: um é o exemplo de caráter mais técnico,
que busca estabelecer os princípios aprendidos em narrativas de experiências
pessoais que envolvam a mediunidade. O outro é de caráter moral, que
relaciona a doutrina espírita com conjunturas políticas, notícias e
fatos do cotidiano.
Assim,
o exercício do comentário é freqüentemente entrecortado por narrativas
orais exemplares, que infundem a densidade do vivido ao texto lido.
Certa vez Ronaldo relatou
que,
numa sessão
de desdobramento, uma senhora entrou em contato com um faraó egípcio
e seus discípulos, que estavam estacionados há milhares de anos sem
evoluir, seguindo-se um trabalho de meses de esclarecimento.
Há, nessas
narrativas orais, o estabelecimento de uma circularidade com o
texto lido, como um jogo especular em que o escrito remete à experiência
e vice-versa, num trânsito circular incessante através do debate.
Um exemplo pessoal é complementado pela citação de um autor ou por uma
história lida. As citações são também complementadas por narrativas
pessoais, rebatendo-se em narrativas de colegas, costuradas em citações
e narrativas por outros, num diálogo constante. Nesse interdiscurso,
não é apenas o estudo ou a aquisição de conhecimentos que está em jogo,
mas também a elaboração coletiva da verossimilhança do próprio sistema
espírita.
Um
segundo recurso freqüentemente utilizado é o de ajustamento do espiritismo
aos avanços da ciência, como por exemplo na afirmação de que
a descoberta
dos cromossomos já estava prevista nos romances de André Luiz.
A
busca de “fatos científicos” concordantes com as alegações da
doutrina era muito freqüente no grupo, tanto quanto a relação ambivalente
com a imagem de cientistas e intelectuais ali atualizada. Outra importante
fonte de reflexões comparativas era fornecida pela representação de
“natureza” trabalhada nos discursos. A partir do pressuposto de sua
“perfeição” e “marca divina” a idéia de natureza era seguidamente usada
para denunciar a “corrupção” e lamentar a “irracionalidade” e o “atraso”
das condutas humanas. A notícia do índio queimado por jovens em Brasília
provocou o seguinte comentário:
Vejam, enquanto
a macaca, que é irracional salvou a criança humana, vejam o que
esses meninos fizeram com o índio.Às vezes eu me pergunto se nós não
somos as criaturas menos evoluídas deste planeta, que nós ainda teremos
muitas encarnações para aprender a lição de Jesus
‘amai-vos uns aos outros’.
O comentário
de notícias, comum nos exemplos dos participantes do grupo, instaura
o gesto hermenêutico de compartilhar a visão de mundo comum pela progressiva
exegese das novas informações. Este trabalho de exegese doutrinária
do mundo é fundamental para a constante atualização de seu sistema religioso,
em face da necessidade de oferecer respostas aos principais problemas
humanos. Cumpre assinalar que essas respostas colocam em cena
a forte dimensão moral que permeia o seu ethos, ao estabelecer oralmente
a ligação de seu sistema de valores e representações com o vivido dos
membros do grupo, “ressemantizando” o mundo à luz da doutrina espírita.
Juntamente com as narrativas mediúnicas, poderíamos caracterizar esse
segundo nível como de reflexões morais, compondo o trabalho de interpretação
de contextos extratextuais à luz da discussão oportunizada pelos textos
lidos.
d) Igualitarismo
explícito e hierarquia implícita no grupoNo
entanto essa dimensão de narrativas e reflexões morais evidenciava o
aspecto de fala hierárquica espírita, fundamentado na assunção valorativa
da preeminência do espiritismo sobre as demais religiões e, por conseqüência,
dos espíritas sobre as demais pessoas. Isso sempre era um tema polêmico
no grupo. Alguns sustentavam que dizer-se espírita nada garantia, assim
como conhecer todos os preceitos evangélicos, se estes não fossem aplicados
diariamente. Como explicar também a envergadura moral de muitos não-espíritas,
de Espíritos missionários, como Gandhi ou Madre Teresa de Calcutá, originários
das fileiras de outras religiões ou mesmo de pessoas comuns, conhecidas
dos membros do grupo, mais espiritualmente elevados que muitos espíritas?
Em alguns momentos levantava-se a questão:
-E se os nossos
governantes fossem espíritas? Será que isso não levaria
à solução de muitos problemas?
Outro: - Mas
declarar-se espírita não é garantia de nada. O sujeito pode ser de qualquer
religião. Quantas barbaridades já se fez em nome da religião. Não
é um governante mas é dentro de todos nós que se deve promover a mudança.
Os questionamentos
assinalados exibem as notas de uma crítica igualitária da idéia de eleição,
pressuposta na fala hierárquica espírita. A superioridade de esclarecimento
não teria efeito, na visão de alguns membros do grupo, se não fosse
associada uma responsabilização moral maior, com a exigência de um programa
de reforma íntima, o que ensejava um outro debate, sobre o sentido desta
reforma. No grupo era atualizada simultaneamente uma visão moral
de indivíduo, como agente moral livre e responsável por suas ações e
outra, associada, em que prevalece um discurso psicologiante sobre o
“interno”, sobre o indivíduo e suas emoções. A reforma
íntima era uma importante vertente de elaboração do interno, como na
prece, sendo recuperada a na órbita de uma apreciação individualista,
que a entronizava como condição de autenticidade das ações externas.
Alguns sustentavam a posição do “tudo ou nada”: ou a reforma íntima
é integralmente levada a cabo ou infirmada pelos pequenos defeitos.
Outros, mais liberais, encaravam-na como meta a ser progressivamente
atingida apesar dos pequenos defeitos e retrocessos. Se era estabelecida
a superioridade da visão espírita de mundo e a pressuposição da verdade
dos conteúdos religiosas das fontes escritas, uma série de lacunas interpretativas
eram objeto de polêmicas no interior do grupo, não sendo resolvidas
pela citação ou busca no texto de elementos que pudessem resolvê-las.
Uma citação ou interpretação explicitamente referida a um texto não
funcionava como instância legítima de argumentação para resolver um
problema desta natureza, em que pese a grande massa de publicações espíritas
que versam sobre os assuntos polêmicos.
A
importância dos posicionamentos pessoais matiza a característica de
discussões como esta no grupo de estudos. Ainda que a referência central
seja a doutrina espírita e os argumentos invocados devam gravitar à volta deste referencial os
enunciados válidos são oriundos de uma incorporação ao saber pessoal
das mais variadas fontes de experiência. Não está em questão
o exame do aprendizado de um conjunto de conteúdos intelectuais mas
a capacidade de fundir a doutrina com o vivido do fiel. Nesse sentido,
a autoridade da fala decorre de fatores extra-discursivos - como
a credibilidade do falante como médium e trabalhador reconhecido,
sua antigüidade no espiritismo e no próprio grupo- e discursivos,
como a articulação dos enunciados, a clareza de sua exposição e a força
de suas razões.
Por
exemplo, um jovem casal, com pouco tempo no grupo tendia a monopolizar
a palavra, polarizando em todos os debates. Alguns membros mais antigos
do grupo se incomodavam com as falas freqüentes dos dois e uma pergunta
lateral que algumas vezes eu ouvia era “quem
é ele?” ou então “de papo ele é muito bom, quero ver na prática”, que
poderia ser traduzida “como com que direito ele usa a palavra como um
interlocutor ratificado dentro deste grupo?” Sendo o espiritismo
um sistema formalmente igualitário, a estruturação hierárquica é implícita,
o que se estende ao direito de uso e ao modo de expressão verbal, cabendo
aos participantes ter o senso de seu lugar nos grupos de que participam.
Como
nas demais situações no centro espírita, a hierarquia era presente de
forma sutil, mas nunca explicitada, por contrariar a ideologia igualitária
que permeia este sistema religioso. Nas pegadas de Dumont (1985,
1992) podemos nos perguntar como se processa essa convivência entre
igualitarismo explícito e hierarquia implícita dentro do grupo. Cavalcanti
(1983), ao discutir as concepções nativas de indivíduo e pessoa, já
havia chamado a atenção para a existência de uma hierarquia de potencial
no espiritismo, ao que acrescentei acima o fator da antigüidade. Importante
ainda é a coincidência entre hierarquia e responsabilidade no espiritismo:
um respeito hierárquico devido a um médium corresponde a uma expectativa
e um controle maior sobre o desempenho de sua função. Como anteriormente
colocado, as posições hierárquicas no espiritismo sobrepõem a
liderança carismática (implícita na hierarquia de potencial entre os
médiuns) e a liderança burocrática (em que o que importa é a responsabilidade
funcional do cargo), resultante da tensão entre a valorização diferencial
dos médiuns e a ênfase igualitária da organização.
No
caso da fala hierárquica dentro do espiritismo, temos uma referência
a todo um sistema de pensamento hierarquizado pela oposição entre plano
espiritual e plano material.
Como sabemos a doutrina espírita é concebida como a doutrina dos Espíritos,
onde a teologia que a fundamenta é vista como uma espécie de emanação
intrínseca de forças superiores ou simplesmente como codificação da
ordem natural das coisas. Estando a crítica racional prevista
no próprio sistema através da noção de livre-arbítrio, é normal que
debates em torno da superioridade intrínseca do sistema espírita sejam
transpostos para uma hierarquização das diferenças sociais como diferenças
de evolução e que as diferenças intelectuais entre os homens como
uma questão de aceitação da revelação kardecista. No entanto, uma conseqüência
desta dimensão hierárquica é a dificuldade de assimilação da superioridade
moral e espiritual de um não-espírita face a um espírita, sempre compensada,
em outro plano, pela referida desigualdade de esclarecimentos.
Conclusão
No
âmbito da leitura e da conversa, podemos retomar a proposição da dimensão
hierárquica implícita à luz da organização discursiva do grupo. A leitura
é concebida como uma atividade de múltiplos fins, sempre sujeita à relação
englobante com uma vivência na totalidade da doutrina espírita
e não de forma segmentada como “aquisição de conhecimentos”. A
leitura e interpretação oral no grupo de estudos é parte, assim de um
conjunto de exercícios espirituais que ali não se esgota mas deve estar
sempre referida à atualização cotidiana da identidade religiosa de seus
membros, dentro e fora do centro espírita. Englobada por esses valores,
é compreensível que a exegese não seja linear, mas siga uma espécie
de coerência multívoca, produto da relação entre o texto lido e as diferentes
ligações pessoais estabelecedidas entre fragmento lido e conjunto pressuposto,
de forma bem diferente da leitura analítico-referencial praticada nos
quadros universitários. Em outras palavras, embora formalmente
o estudo seja produto de um trabalho da razão, esta não funciona bem,
na visão espírita, se não estiver amparada por uma “inspiração espiritual”
ou seja, uma conexão bem estabelecida e equilibrada com as forças espirituais
supostas como presentes a qualquer situação humana. É essa “inspiração
espiritual” mais a relação de autoridade entre os diferentes participantes
que garante uma coerência, em última instância, a qualquer rumo que
um debate possa tomar no grupo de estudos.
Ora,
essa afirmação simultânea da dependência e do livre-arbítrio no espiritismo
(para retormarmos os termos da discussão de Cavalcanti, 1983) leva ao
paradoxo de uma valorização ambígua e condicional do intelecto no espiritismo.
Sede simbólica do conhecimento e das decisões individuais ela está englobada
pelo imperativo maior de progresso moral, com a conseqüente introdução
de um anti-intelectualismo num sistema que tanto valoriza o estudo e
o conhecimento.
Deste modo, a leitura e a conversa, no grupo de estudos, salientam um
disciplinamento pela forma e pela referência a um conteúdo doutrinário
geral, levando em consideração a criação de uma competência, de um hábitus
lingüístico de falante espírita. Neste habitus, a conjugação verbal
de um discurso descontínuo com um ritmo contínuo, fundamental nas palestras
de trechos lidos ao acaso baseia-se na crença na subordinação do orador
a um plano espiritual que inspirará suas palavras. Nesta, o enquadramento
das formas verbais pressupõe uma certa relação circular e subordinada
com as formas escritas e literárias, onde o interdiscurso verbal
fundamenta-se no intertexto literário.
A
leitura espírita, de certo modo remete à sedimentação doutrinária operada
na literatura, que
realiza um incessante exercício de comentário e reiteração dos principais
temas e dogmas do kardecismo (cf. Lewgoy, 1998). Além de remeterem uns
aos outros, os textos espíritas têm uma característica de redundância,
funcionam sempre como chaves para a totalidade, resumem, sintetizam
e recapitulam os pontos principais do sistema. Numa tradição iniciada
pelo próprio Allan Kardec, eles podem ser lidos em diversos níveis de
aprofundamento, com propósitos claramente didáticos, desde o manual
de iniciação do leigo até o texto mais especializado e especulativo
destinado aos iniciados. A condensação, junto com a inserção do espiritismo
na tradição cristã através das genealogias espirituais, fundamenta a
sua eficácia simbólica através da uma elasticidade semântica
de seu discurso, sempre adaptável às finalidades pragmáticas do
auditório. Esta elasticidade semântica do discurso espírita permite,
desde a retomada da inspiração bíblica do Novo Testamento, onde os espíritas
podem resumir todo o sentido de sua doutrina na citação “ama a teu próximo
como a ti mesmo”, até discursos altamente especializados,
destinados a um público restrito.
Já
a fala do grupo de estudos é uma fala de convertidos, mais “ontológica”
do que “dialógica”, para retomarmos a distinção
que Jonathan Boyarin (1993) faz entre o Novo e o Antigo Testamento.
Estuda-se e discute-se em grupo não para aceitar ou refutar a doutrina,
mas para poder prosseguir o trabalho de proselitismo, que tem no conhecimento
uma dimensão essencial. É justamente o conhecimento da doutrina
como um todo coerente, aliás facilitada pela sua capacidade de ser apreendida
em poucas máximas, um dos principais fatores de atração do espiritismo,
viabilizando diversos graus de adesão e engajamento intelectual por
parte de seu público.
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Bernardo Lewgoy
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Doutorando em Antropologia Social pela USP
E-mail:blewgoy@nutecnet.com.br
Pesquisa desenvolvida
sob a orientação da Profª Drª Paula Montero junto ao Curso de Pós-Graduação
em Sociologia/USP.