A interação dos discursos científico e religioso
O senso comum diz que ciência e religião não se
misturam. No entanto, quando se trata de compreender os discursos
religiosos e científicos, emergem uma série de articulações entre
eles, ambos vistos como narrativas e interpretações do mundo
inseridas em um contexto histórico, social, político, econômico e
cultural.
Segundo a socióloga da Unesp, Leila Marrach de
Albuquerque, é nesse sentido que se pode procurar compreender, por
exemplo, a aproximação entre o discurso científico e o kardecismo
(ou espiritismo), doutrina filosófica e religiosa que surgiu no
século XIX, formulada por Hippolyte Denizard Léon Rivail, mais
conhecido como Allan Kardec.
O século XIX caracterizou-se, no mundo ocidental,
pela predominância da idéia de ciência moderna e racional oriunda
dos séculos XV e XVI, a qual colocava-se em oposição à tradição,
religião, magia e ao aristotelismo. Somou-se a isso, as noções, da
mesma época, de positivismo, cientificismo, empirismo e
evolucionismo, todas simultâneas ao colonialismo. Albuquerque afirma
que influenciada por esse contexto, a fundamentação do kardecismo
reveste-se de uma linguagem muito próxima da ciência do período,
incorporando idéias do discurso científico vigente.
Para Benito Bisso Schmidt, cientista social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os últimos anos
do século XIX e os primeiros do XX foram marcados pela difusão de
diversas teorias cientificistas, que deixaram marcas profundas no
estudo da natureza (Darwin), da sociedade (com o positivismo de
Comte e o darwinismo social de Spencer), no direito e na psiquiatria
(com a antropologia criminal de Cesare Lombroso e Enrico Ferri), e
mesmo na religião (com o kardecismo). Para ele, tais correntes
buscavam romper com explicações abstratas e metafísicas, buscando
desvendar racionalmente a lógica do mundo natural, social, humano e
sobrenatural, preferencialmente através da observação empírica.
"Todas tinham como ponto em comum a convicção de que a ciência e a
técnica poderiam resolver os problemas básicos da humanidade", diz
ele.
O antropólogo Emerson Giumbelli, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também concorda com a
possibilidade de associar parte das características do espiritismo
às idéias da segunda metade do século XIX, e exemplifica com a
trajetória do próprio Kardec: "Rivail formou-se como educador e está
longe da imagem que, geralmente, temos dos fundadores religiosos.
Nenhum grande acontecimento místico marca sua vida. Além
disso, ele aproximou-se dos fenômenos associados ao espiritismo com
uma curiosidade cética e insistiu em sustentar as credenciais
científicas da doutrina a que chamou espiritismo". Giumbelli ainda
destaca que uma das frases mais conhecidas de Kardec é: "O
sobrenatural não existe". O kardecismo exprime assim uma mentalidade
da época que é cientificista.
Em seu livro O cuidado dos mortos: uma história da
condenação e legitimação do espiritismo, Giumbelli apresenta o
espiritismo como uma produção histórica. A antropóloga Patrícia
Blum, da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj), avaliou a pesquisa
de Giumbelli: "uma compreensão do kardecismo como resultado de um
processo, de uma conjunção peculiar, um encontro de estratégias
discursivas, desenvolvidas por agentes sociais diversos".
Albuquerque complementa ainda que, dado o contexto
europeu do século XIX, Kardec incorpora procedimentos científicos
rigorosos para encontrar seu espaço na sociedade francesa. "São
procedimentos baseados no método próprio da ciência moderna. Além
disso, ele define o espiritismo como ciência, filosofia e religião,
preocupado em garantir níveis de verdade a uma prática que, no
contexto do cientificismo, seria desprestigiada, porque era
religiosa".
A construção da relação entre espiritismo e ciência
Segundo a socióloga da Unesp, a idéia de reencarnação
é fruto de idéias hinduístas e budistas que circulavam na Europa,
devido ao contexto colonial. "Kardec afirma que a idéia de
reencarnação é originária dos druidas (mito gaulês), povo que teria
vivido onde hoje é a França. É até possível que os druidas também
tivessem essas idéias, mas há poucas e fragmentadas informações
sobre culturas pré-romanas, enquanto que por outro lado, tínhamos
toda a Ásia muito presente no dia-a-dia da Europa", diz Albuquerque.
Ela destaca que o mais interessante da formulação
desse pressuposto do kardecismo é o distanciamento da doutrina
hinduísta da metempsicose, que afirma a possibilidade da
reencarnação dos seres humanos em plantas e animais. Isso permite a
aproximação da idéia de evolucionismo, não no sentido darwinista,
mas daquele que associa a idéia de evolução com a idéia de
progresso. A socióloga nota que, no hinduísmo há uma integração
muito grande entre homem e natureza. "No hinduísmo toda a natureza é
personagem. Já no kardecismo esse aspecto foi eliminado e, no bojo
do evolucionismo, o homem reencarna para evoluir, melhorar,
progredir e, ao mesmo tempo, é o senhor da natureza. Ele a domina de
maneira coerente com esse modelo científico, a ciência racional,
moderna e antropocêntrica", diz ela. Albuquerque observa ainda, que
essa aproximação com o evolucionismo afasta a noção de tempo cíclico
característico da cultura hindu. "Na Índia, o tempo é entendido como
cíclico, diferentemente da idéia de tempo evolutivo, linear, do
ocidente, que segue numa única direção, a do progresso e da
melhora", explica ela.
O outro pilar do espiritismo segundo a socióloga é a
noção de carma, também hindu, que enfatiza a responsabilidade do
homem pelas suas ações passadas e presentes, com conseqüências para
sua própria existência. Essa idéia foi associada no kardecismo a uma
noção também científica, a de causalidade. "O kardecismo associou a
idéia de carma às leis de causa e efeito, isto é, o que se faz numa
encarnação teria efeito em outras encarnações, e o que acontece com
determinada pessoa hoje seria resultado de vidas pregressas".
O terceiro pressuposto é a comunicação com os
espíritos dos mortos ou mediunidade. Para a socióloga, é nesse ponto
que Kardec mostra mais claramente a prática do empirismo e da
necessidade de verificação. As sessões de comunicação com tais
espíritos eram uma forma de verificar as hipóteses cientificamente,
através de procedimentos controlados. Enfim, para a socióloga, Allan
Kardec constrói o discurso do espiritismo apropriando-se de noções
originárias de países colonizados e dando à elas um novo significado
no contexto da civilização científica.
Albuquerque conclui que, se existe uma aproximação
entre ciência e kardecismo, ela está nesse empenho de Kardec, em
submeter seus pressupostos religiosos a verificações científicas, ao
rigor do método, tendo como pano de fundo um tempo evolucionista.
Ciência e kardecismo hoje
Norteada pelas obras de Allan Kardec, a aproximação
entre ciência e espiritismo continua vigente entre os espíritas
kardecistas. Uma das passagens que dá margem para essa continuidade
está em A Gênese, na qual Kardec afirma a necessidade de que
o kardecismo acompanhe as mudanças na ciência e seja sempre
atualizado: "caminhando de par com progresso, o espiritismo jamais
será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem
estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse
ponto".
É nesse sentido que o físico e filósofo da ciência da
Unicamp, Silvio Seno Chibeni, procura distanciar o espiritismo
kardecista do positivismo. Para Chibeni, essa vertente filosófica
está mais relacionada com a parapsicologia, que ele rejeita e
caracteriza "pela pretensão à cientificidade". Apesar desse
distanciamento proposto, Chibeni procura em diversos textos
aproximar-se de clássicos da filosofia da ciência, como Thomas Khun
e Imre Lakatos, para defender que a doutrina espírita constitui sim
um paradigma científico. "A teoria espírita se faz acompanhar
daqueles elementos vitais de um legítimo paradigma científico, e que
nem sempre são inteiramente explicáveis: critérios, métodos e
valores, que norteiam a busca, descrição e avaliação, tanto de
fatos, como de princípios resolvidos pela teoria espírita,
verdadeiros modelos a serem seguidos na abordagem de outros
problemas", afirma Chibeni.
A Federação Espírita Brasileira também afirma que o
espiritismo busca estar lado a lado com a ciência, aceitando
descobertas científicas, buscando explicações racionais e lógicas
para todas as coisas e crendo na criação divina, sem se permitir
fundamentalismos. Apesar da crença na criação divina, os kardecistas
não aderem à idéia criacionista de que o mundo tem apenas seis mil
anos de idade. Em texto de A Gênese, Kardec chega a avaliar
como hipótese articulável com a doutrina espírita, a possibilidade
do homem descender do macaco. No entanto, não aceita nem recusa a
hipótese.
Emerson Giumbelli, antropólogo da UFRJ, explica que
alguns cientistas sociais e historiadores consideram que no Brasil o
espiritismo tornou-se menos científico e mais religioso. Para
defender esse ponto de vista, apontam a ênfase dada, no Brasil, à
caridade, aos evangelhos cristãos e às curas. Mas o próprio
Giumbelli discorda dessa posição, afirmando que tais elementos,
embora exacerbados no Brasil, já existiam nas formulações
kardecistas originais, e nada há neles que invalide, dentro das
concepções espíritas, o recurso à ciência. "A rigor, um espiritismo
sem ciência, seria um espiritismo sem mediunidade. É verdade que são
poucos os intelectuais que se dedicam a elaborações eruditas sobre a
mediunidade e, menos ainda, os que lhe conferem interesse
científico. No entanto, a referência à cientificidade funciona como
um sinal capaz de assinalar diferenças relativas", diz Giumbelli. O
antropólogo ainda cita o artigo de Gerson Simões Monteiro, liderança
espírita do Rio de Janeiro, posicionando-se na atual controvérsia
sobre o criacionismo. "No artigo, Monteiro resume com aprovação as
teorias que seguem a linha darwinista e conclui com afirmações, que
sustentam exatamente o que o espiritismo pretende ser, uma síntese
entre ciência e religião".
(MK)
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