A PALAVRA E OS MORTOS

Glória Maria Vanderlei de Almeida.*
Mestre em Ciência da Religião pela PUC São Paulo.
Profa. do Depto.de Psicologia- UFPB.

Esta vida “vem” de qualquer parte que não é este mundo, e finalmente retira-se de cá de baixo e “vai-se’” para o além. Prolonga-se de uma maneira misteriosa num lugar desconhecido, inacessível à maior parte dos vivos. A vida humana não é sentida como uma breve aparição no tempo, entre dois nadas; é precedida de uma preexistência e prolonga-se numa pós-existência. Sabe-se muito pouco sobre estes dois estádios extra-terrestres da vida humana, mas sabe-se, apesar disso, que eles existem. Por conseqüência, para o homem religioso, a morte não põe um termo definitivo à vida. A morte não é mais do que uma outra modalidade da existência humana.1

                Este trabalho é resultado de uma pesquisa realizada em função da realização de um curso de Mestrado em Ciências da Religião. A pesquisa foi realizada com um tipo de prática religiosa especifica: o Grupo Espírita Familiar - GEF que, ao nosso ver, constitui uma reação a um controle institucional, à medida em que recupera o espaço doméstico, onde a comunicação com os espíritos dos mortos se estabelece num clima de intimidade, em que podem ser satisfeitas certas necessidades individuais, longe da solenidade formal das instituições públicas.
                Os grupos espíritas familiares se reúnem com os propósitos de atingir elevação espiritual, adquirir conhecimento através de estudos espíritas e espiritualistas, compreender os evangelhos e, essencialmente, se comunicar com os mortos. Esta é a atividade que absorve a maior parte do tempo desses grupos.
                Não são, porém, os espíritos dos mortos, no sentido em que tratamos os nossos mortos familiares, com que os espíritas em geral procuram entrar em comunicação. É contraditório, pois, chamar de mortos os espíritos que se comunicam com os membros dos GEFs. Esses espíritos estariam apenas desencarnados, pertencendo a diversas categorias ou classes: espíritos mentores, curadores, guias, obsessores, sofredores; espíritos elevados, espíritos atrasados. Para Kardec, “a morte não é mais do que a destruição do invólucro material, que a alma abandona, assim como a mariposa abandona a crisálida, conservando, não obstante, o seu corpo fluídico ou perispírito.”2
                Sendo assim é natural que os grupos espíritas familiares entendam que se comunicam com espíritos vivos que terminaram o seu período de vida terrena e agora estão no plano espiritual, cada um segundo seu grau de desenvolvimento e segundo seus merecimentos.
                Esta comunicação se diferencia do culto dos mortos feito pelos nossos antepassados que nos parece ter como elementos essenciais as oferendas, os sacrifícios, as atitudes de reverência, respeito e distância que mantinham entre os dois mundos: o dos vivos e o dos mortos. Essa diferença não impede que consideremos que o tipo de prática do GEF mantém pontos de encontro e semelhanças com cultos e práticas ancestrais, o que nos leva mais uma vez a pensar no quanto repetimos ao longo da história.
                Precisamos agora recorrer a alguns estudos que tratam da morte, para que possamos apreender de forma mais precisa o significado desse tipo de comunicação com os espíritos, tal como é exercida pelos grupos espíritas familiares.

A Morte
                Um fim para alguns, um começo para outros, uma passagem, um estágio, uma oportunidade de desenvolvimento para os espíritas. A morte sempre foi para o homem objeto de preocupação. As concepções de valor, de vida e de morte parecem formar um bloco conceitual.
                A morte é também sinônimo de parada, finalização, inércia, ausência de movimentos, é entrega, no sentido de rendição, de recusa à luta. O corpo físico, ao menos esse, já se tem como certo, pára de trabalhar, de exercer suas funções. Desta morte, a morte clínica, a medicina se encarrega de catalogar: morte natural, súbita, aparente, absoluta, entre outras.
                Quando pensamos sobre a morte, um aspecto é particularmente significativo: tal qual o nascimento, ela é um acontecimento absolutamente individual. É um fenômeno também de natureza psicológica para o homem que está vivendo o processo de morte, assim como para as pessoas que lhe são próximas. O momento da morte é constituído de forte carga emocional, subjetiva, pessoal, quando se questiona o verdadeiro sentido da vida e simultaneamente se confronta o significado dos seus valores. Paradoxalmente, o homem pensa mais seriamente na vida quando se defronta com alguma morte significativa para ele, ou quando sente a possibilidade da sua própria morte.
                O homem atual só enxerga a morte se ela lhe priva do afeto de alguma pessoa próxima. De resto, ela é banal, cotidiana, servida diariamente em nossas salas pela televisão a cores, como algo que diz respeito apenas aos outros. Só quando nos toca afetivamente a morte assume sua vida própria.
                O momento do nascimento, igualmente carregado de significado, renova no homem as esperanças de realizações das potencialidades, enquanto que na morte se concretiza o final das expectativas e possibilidades, ressaltando ainda o aspecto da absoluta solidão do ser humano.
                A morte simboliza, por um lado, a submissão e a impotência, e por outro a plenitude. Momento em que a curva existencial chega ao seu ponto máximo e a vida já não cabe no limite corporal. Para algumas filosofias e religiões, significa nascimento, renascimento, volta, retorno.
                Uma das formas de conhecer o homem tem sido a pesquisa sobre as atitudes com que tem enfrentado a morte e tratado os seus mortos. A Antropologia registra diversas formas de rituais que as sociedades utilizaram e utilizam para lidar com os seus mortos. Algumas comunidades reagiam agressivamente com rituais canibalísticos ou jogando o corpo dos seus mortos para os animais. Umas utilizam rituais tranquilizadores, outras cuidam de reverenciá-los. Na China, no Japão, na África, o culto dos mortos tinha, segundo a Antropologia, funções de organizar e equilibrar as comunidades que deles faziam uso, como: garantir a continuidade do clã, manter a boa harmonia entre os vivos e os mortos, satisfazer necessidades materiais, reorganização espiritual, etc.3
                Em um dos seus estudos, Philippe Ariés4 faz uma análise da atitude diante da morte durante a idade média. Naquele momento as pessoas tinham tempo para perceber a proximidade da morte como algo natural. Este autor fala ainda da simplicidade com que se morria. Apesar de ser um acontecimento privado, havia publicidade sobre a morte. Morria-se em família, sendo o centro das atenções. Aos moribundos era dada a oportunidade de ser escutado sobre os seus desejos e sobre as determinações pós-morte. O estudo aponta ainda que na Idade média existia fortemente a crença de que a morte avisava quando ia chegar. Esta crença é ainda hoje bastante difundida. Não sendo incomum ouvirmos histórias sobre avisos, sonhos, sinais indicativos da proximidade da morte. A diferença é que hoje existe uma relutância maior na interpretação destes sinais e, com freqüência, são relatados após o fato ocorrido.
                Apesar dessa familiaridade com a morte, na Idade Média existia uma distância com os mortos que se evidenciava pelos lugares escolhidos para enterrá-los. Os sepultamentos eram feitos longe das cidades, em lugares fora dos seus muros. Depois, “os mortos deixaram de fazer medo aos vivos, e uns e outros coabitaram nos mesmos lugares por traz dos muros. Como se passou tão depressa da antiga repugnância a nova familiaridade? Pela fé na ressurreição dos corpos, associada ao culto dos antigos mártires e de seus túmulos.”5 Em certo momento, os mortos passaram a ser enterrados nas capelas, passando a dividir um mesmo espaço com os vivos da família, ao menos em alguma delas que dispunham de poder econômico para merecê-lo. Ariés chama de morte domada a essa morte que significava algo natural, passível de convivência na sua proximidade, familiar e tranqüilamente íntima. Considera ainda que hoje somos selvagens frente à morte, com o nosso medo e repulsa.
                Um trabalho que trata das atitudes mentais na Inglaterra, também no período medieval, de Keih Thomas, acrescenta-nos algumas informações sobre essa proximidade entre vivos e mortos, o que nos ajuda a compreender melhor a naturalidade com que se dá, hoje a comunicação com os espíritos nos GEFs. Esta pesquisa mostra como os fantasmas foram importantes presenças na Inglaterra e como independiam de qualquer crença ou religião. Pessoas de diferentes classes sociais e diferentes crenças acreditavam na existência de fantasmas que habitavam casas assombradas. A igreja católica, porém, racionalizou esta crença e aproveitou-se dela para fortalecer a fé da população, “ensinando que tais aparições eram as almas dos que estavam presos no purgatório, incapazes de descansar até terem expiado seus pecados; e não faltavam histórias de fantasmas, ou indivíduos que afirmavam ter encontrado tais aparições.”6
                A reforma protestante negava a explicação dada pelo catolicismo, mas também era ambivalente. Dizia que se tratava de espíritos sim, porém, garantiam que deviam ser de espíritos maus. Depois da reforma esta situação mudou, pois os reformista negavam a existência do purgatório, afirmando que após a morte todos os homens seguiriam para o céu ou para o inferno, segundo os seus merecimentos e não poderiam voltar de nenhum dos dois mundos.
                Elisabeth Kübler - Ross, que começou a trabalhar com a morte quase acidentalmente, é a primeira personalidade do mundo acadêmico-científico que comunica um estudo sobre o enfrentamento da morte, narra nos seus livros as peculiaridades desse processo. Ao lado de pacientes terminais, se dispôs, a partilhar da imensa solidão do caminhar para a morte. Descreve estágios gradativos em que as atitudes frente à proximidade da morte se modificam desde a negação e o isolamento até o instante em que, finalmente, o paciente aceita o fato inevitável com calma e serenidade.
                Os estágios por ela descritos não acontecem numa ordem determinada. Cada paciente vive esses momentos segundo as suas necessidades psicológica e o último estágio, o da aceitação, nem sempre chega de forma calma e serena. Depois de muito tempo de trabalho, a autora concluiu que esse acompanhamento é de extrema necessidade, pois o ser humano tem o direito de ser ajudado a morrer por alguém que partilhe de suas angústias e medos face a proximidade da morte.7
A Palavra
                Pode-se dizer que o homem existe pela palavra, e para ela. O homem nasce sem o domínio da palavra, e por isso está, de início, absolutamente só. É pela palavra que se desenvolve e se constrói enquanto ser social. A morte o devolve à sua solidão, roubando-lhe a palavra com que se comunica com o resto do mundo.
                As palavras têm uma dupla propriedade: por um lado, exprimem e veiculam a afetividade, evocam estados subjetivos e, por outro, nomeiam e descrevem fatos e objetos. Segundo Edgar Morin, “a palavra é simultaneamente objetiva e subjetiva: estado de alma e determinação, técnica e magia, instrumento e poesia.”8
                Pelo ventre materno o homem aporta ao mundo, talvez entre outros imperativos, para aprender e exercitar-se no uso da palavra. A Morte o priva outra vez dessa possibilidade, quando o faz retornar submissamente para a o único ventre que agora lhe cabe. Agora, a linguagem representa uma falta, um vazio que só pode ser suprido pelos vivos, encarnados.
                Assim, pensamos ser a falta da palavra que faz com que os espíritos desencarnados aportem nos GEFs, pois é através dela que podem compreender sua situação no plano espiritual. Através do médium9 , que lhe empresta a possibilidade de ouvir e ser ouvido, é que ele será capaz de assumir seu novo estado e também seus novos limites.
A Palavra dos mortos
                A crença na manifestação dos espíritos dos mortos, na existência de espíritos protetores, em forças e entes sobrenaturais, sempre existiu na história humana. De acordo com as peculiaridades culturais dos povos, tais crenças recebem diversas formas de simbolização, seja através de rituais mágico-religiosos, manifestações folclóricas ou sistemas conceituais mais elaborados em termos filosóficos ou de concepções-de-mundo mais amplas.
                Na Cultura branca européia, tais crenças se organizaram em torno da doutrina espírita, tal como codificada por Allan Kardec, pseudônimo do sábio francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, em meados do século XIX. Foi o movimento espírita que reconheceu e se esforçou por clarificar que os espíritos dos mortos, sem corpo material, precisavam do corpo dos vivos para manifestar suas necessidades, agora de ordem espiritual. Como afirma o próprio Kardec, “por meio do perispírito, o espírito faz o médium escrever, falar ou desenhar. Não possuindo corpo tangível a fim de agir ostensivamente, quando deseja manifestar-se, serve-se do corpo do médium, apodera-se de seus órgãos, que faz agir como se fossem os seus próprios, por meio do eflúvio fluídico que sobre eles derrama.”10
                No âmbito de nossa pesquisa, achamos útil destacar as noções de visível e invisível que, no funcionamento conceptual espírita, são termos que se complementam. Chamamos de mundo visível aos freqüentadores encarnados do GEF, assim como aos materiais rituais utilizados nas reuniões. O mundo invisível, por sua vez, incluirá as entidades espirituais que se comunicam através dos médiuns, as reações afetivas e intelectuais dos participantes encarnados, assim como supostos fenômenos de magnetismo e fluidificação energética.
                No GEF, a palavra tem uma função articuladora entre as necessidades dos seus membros visíveis e invisíveis. O GEF cria um espaço de comunicação, onde os espíritos desencarnados podem, provisoriamente, recobrar a fala perdida para, com isso, dar seguimento ao processo de evolução, até que, supomos, algum outro tipo de linguagem, diferente da fala humana, possa ser utilizado num provável processo de comunicação interespiritual. Enquanto tal suposto processo não é alcançado, o aparelho fonador do médium é usado para expressar suas necessidades mais direta e claramente, seja para compreender o novo momento da vida em que se encontram, ou para expressar seus desejos de mudança no plano espiritual. Isto só é possível através da linguagem e dos órgãos responsáveis pela emissão dos sons, privativos dos encarnados.
                A fala de alguns espíritos, através dos médiuns, parece indicar que no plano espiritual eles continuam vivendo as mesmas dificuldades que sofriam enquanto “ vivos”, na terra, como no exemplo daquele que, na terra, tomava remédios em hospitais, e continuavam com a necessidade de continuar recebendo a medicação. Através da comunicação, este espírito pode ultrapassar o nível de compreensão da sua realidade.
                O significado da palavra para o GEF na sua prática de intercomunicação entre dois mundos revelou-se com uma força extraordinária. A palavra para os desencarnados, invisíveis, serve para que possam dizer como se sentem naquele momento da vida. Para aqueles que se encontram num estágio de desenvolvimento onde não compreendem que morreram, ou que desencarnaram, como tratam os espíritas, a palavra serve como elemento de passagem, oferecendo a possibilidade de comunicação tanto com os membros encarnados do grupo como com os membros desencarnados mais evoluídos, possibilitando o encontro de um outro caminho que lhes trará maior paz e harmonia.
                A palavra para os encarnados, visíveis, representa igualmente um instrumento, do qual se utilizam para pedir orientação, conselhos, a espíritos que consideram mais desenvolvidos e capazes de os orientar sobre as dificuldades da vida material.
                A palavra é, então, utilizada pelos dois mundos - visível e invisível - com a finalidade de obter instruções sobre a vida no mundo visível e revelações sobre a vida do mundo invisível. Necessidades que acompanham o homem desde os tempos imemoriais e que encontram no Grupo Espírita Familiar um espaço íntimo, privado e quase oculto para concretizar, ou corporificar um espaço de transição entre a vida e a morte.
                Percebemos também uma relação direta entre o nível das comunicações espirituais e o nível de comunicação intergrupal. Assim, grupos compostos por pessoas mais desenvolvidas intelectualmente, recebem comunicações dirigidas a um plano intelectual mais universal e abrangente. Nos grupos onde predominam menores perspectivas intelectuais em relação ao mundo, as comunicações são mais diretas, mais ligadas à vida prática e a questões imediatas da vida material.

Bibliografia

Akoun, André, Dicionário de Antropologia, Editorial Verbo, 1983.
Ariés, Philippe, O homem diante da morte, Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1981.
Eliade, Mircea., O sagrado e o profano, Lisboa, Editora Livros do Brasil, s/d.
Kardek, Allan, O que é o espiritismo, São Paulo, Editora Pensamento, 1976.
Keith, Thomas., Religião e declínio da magia, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
Kübler-Ross, E., Sobre a morte e o morrer, São Paulo, Martins Fontes, 1981.
Morin, E., O homem e a morte, Lisboa, Publicações Europa-América, s/d.

 


1 Mircea Eliade, O sagrado e o profano, pp. 156-157.
2
Kardek, Allan, O que é o espiritismo, p. 117.
3
Cf.Akoun, Dicionário de Antropologia, 1993
4
O homem diante da morte, 1981.
5
Ariés, P., Op. Cit. p. 7.
6
Keith, T., Religião e declínio da magia, p.476
7
Cf. Kübler-Ross, E., Sobre a morte e o morrer, 1981.
8
Morin, E., O homem e a morte, s/d, p. 89.
9
Pessoa apta a sentir a influência dos espíritos e a transmitir os pensamentos destes.
10
Kardec, A. O que é o espiritismo, 1976, p. 122-23.