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Crônica da Morte Anunciada

Dr. Antonio Mourão Cavalcante
Professor Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina/UFCe,
autor de O Ciúme Patológico e Drogas, Esse Barato Sai Caro (Ed. Record)

Introdução

Estive realizando um seminário com médicos do Interior do Ceará. Curso de Formação para o Programa de Saúde da Família. Cada médico/aluno recebeu a tarefa de relatar uma história/caso em Psiquiatria. O que eles, como clínicos, se defrontram pelo Interior a fora. Escolhi essa história - relato abaixo (1) - para mostrar que a Assistência Psiquiátrica, em termos de serviço público é, ainda, extremamente deficitária e que pouco fazemos nestes episódios.

Imagino que seja uma tarefa nossa - como trabalhadores em saúde mental - denunciar e pleitear um melhor atendimento, mais qualificado, com condições objetivas. Parece que os colegas de outras especialidades tem obtido mais êxito. Lembro-me dos infectologistas e a batalha da Aids. Refiro-me aos endocrinologistas e as campanhas contra o diabetis. E, tantos outros exemplos.

Na Psiquiatria os avanços ainda esbarram em muitos obstáculos e o silêncio, com frequência, parece nos bastar.

Sem assistência adequada, a morte acaba sendo o esperado.

A história

PAS, 33 anos, natural e residente em Pedra Branca, sertão central do Ceará, agricultor, casado, católico.

O paciente compareceu ao Centro de Saúde da cidade, acompanhado de sua esposa, com queixas de agitação e alucinações auditivas. Estávamos em abril/2000.

Na avaliação inicial também percebia-se comportamento delirante. Mania de perseguição, afirmando, constantemente, que alguém pretendia matá-lo.

Nesta época não designava nome às alucinações. Perdeu a capacidade laborativa e, em consequência, o sustento da família. Tinha três crianças de cinco, três e um ano. A sobrevivência ficou gravemente comprometida. Foi-lhe prescrito haloperidol (5 mg/dia) e prometazina (50 mg/dia), tendo apresentado pouca melhora até a reavaliação - 15 dias depois. A dose foi aumentada para 10 mg de haloperidol por dia + prometazina (75 mg/dia).

Na segunda reavaliação já se mostrava menos agitado e relatava desaparecimento das alucinações. O sono ainda era um pouco inquieto. Foi tentada a redução gradativa do haloperidol, instituído-se 5 mg de haloperidol + 75 mg de prometazina/ dia, após um mês. E assim ficou por aproximadamente três meses.

Após este período, a agitação juntamente com as alucinações, retornaram. O sustento da família, nesta altura, já era garantido pelo trabalho da esposa, embora já se houvesse indicado auxílio previdenciário. A esposa deixava as crianças aos cuidados do pai e sob os olhares dos vizinhos. Trabalhava como doméstica em casa próxima à sua.

Na necessidade de reavaliar-se o tratamento, o mesmo foi encaminhado ao psiquiatra que atende quinzenalmente no município, tendo-lhe acrescentado levomepromatiza 75 mg/dia. O quadro evoluiu sem melhora e após um mês de tratamento o psiquiatra prescreveu-lhe clozapina (200 mg/dia). A primeira receita foi custeada pelo prefeito da cidade. A melhora após um mês de administração do fármaco foi expressiva.

Contudo, sendo este medicamento caro e indisponível para distribuição regular ao público, logo foi suspenso. Na impossibilidade de se oferecer regularmente a referida prescrição, foi-lhe instituída, novamente, a associação de haloperidol (5 mg) + levomepromazina (75 mg) + prometazina (75 mg)/diariamente.

Neste mesmo período o filho mais novo do casal foi internado no hospital municipal com quadro de pneumonia associada a diarréia mucosanguinolenta. Apesar do tratamento intra-hospitalar, a criança evoluiu com piora e foi transferida para Fortaleza, onde veio a falecer cinco dias após. A mãe acompanhava a criança.

O paciente reapresentou o quadro de agitação, alucinação e delírio, passando a ter a figura do filho falecido como personagem de seus delírios e alucinações. Afirmava que este lhe chamava insistentemente e o demônio o perseguia, tentando arrebatar-lhe a alma.

Dois meses depois ele foi morar em companhia dos pais na região rural, deixando os filhos aos cuidados da mãe na zona urbana da cidade. O contato com o paciente foi perdido e a esposa já não dava maiores informações sobre seu paradeiro, relatando, apenas, que a família do mesmo assumira seus cuidados.

Passou-se o tempo. Em fevereiro de 2001 o paciente foi trazido para a realização de exame de corpo de delito cadavérico no hospital municipal, devido a suicídio por enforcamento no domicílio dos pais...

(1) Relato apresentado pelo Dr. Paulo Arruda Neto, aluno do Curso de Especialização em Clínica Médica - Faculdade de Medicina/UFCe.

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