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Autópsia psicológica em adolescente suicida Relato de caso
Luis Arenales (autor responsável) Psiquiatra
Nelma H. B. Arenales - Psicóloga Clínica
José P. Cruz - Psicólogo Clínico
Resumo
A autópsia psicológica propicia dados importantes para o estudo da conduta suicida. E a partir destes dados pode-se revisar toda a história do paciente e idealizar programas de intervenção frente a conduta suicida.
O texto avalia o contexto social, familiar, e estudo psicopatológico da adolescente suicida. Os aspectos psicopatológicos apresentam-se de fundamental importância, assim como as características do meio cultural diante de importantes alterações psíquicas nos meses que antecederam o suicídio.
Destaca-se a importância da avaliação detalhada de adolescentes com ideação suicida, assim como a necessidade imperiosa de atendimento aos núcleos familiares com história de prévios atos suicidas consumados, na tentativa de reduzir o suicídio.
Unitermos: Suicidio; Autópsia psicológica; adolescente.
Introdução
"...E, vai, Nhinhinha adoeceu e morreu. Diz-se que da má água desses ares. Todos os vivos atos se passam longe demais..." Guimarães Rosa.
A autópsia psicológica busca determinar a motivação e entender todo o desenrolar dos acontecimentos que antecederam a morte. Apesar de suas dificuldades, em basear-se em um exame retrospectivo de fontes secundárias de informação, é uma metodologia confiável e propicia dados importantes sobre o suicídio1,2,3,4.
Apresentação do caso
Metodologia
Os dados descritos foram obtidos através de entrevistas familiares (pais e duas irmãs maiores de idade) na própria residência, e em entrevistas no Centro de Saúde, onde se dirigiu a família para seguimento. Também foi entrevistado um "Curandeiro", que assistiu TM em um período de dois meses antes do suicídio. O número de entrevistas foram duas para cada pessoa (uma na residência e outra no Centro de Saúde). E o curandeiro também foi entrevistado duas vezes, ambas em sua residência. Objetos pessoais também foram avaliados, mas não foi encontrado nenhuma "carta de despedida". Entre a data de suicídio e o inicio das entrevistas transcorreram dois meses. A entrevista se baseou na história clínica (antecedentes pessoais e familiares), circunstância da morte, descrição do comportamento nos meses anteriores que antecederam a morte, e opinião pessoal dos motivos que levaram ao suicídio. Após a compilação dos dados, foi aplicado os critérios da CID-105 para o diagnóstico psiquiátrico nas alterações psicopatológicas relatadas.
História
TM é uma menina de 13 anos. É a 10ª filha, de uma prole de 11 filhos. Os pais estão separados há 3 anos. Apesar da separação, os pais vivem a uma distância de menos de 1000 metros (zona rural). Com a separação, TM passa a viver com o pai, e deixa a escola para "cuidar da casa". TM dorme no mesmo quarto do pai.
Na história familiar existem três suicídios anteriores. Todos eram primos de 1º grau, homens e, em todos o método utilizado foi o enforcamento. O primeiro no ano de 1996, enforca-se após matar a mulher, degolando-a. Não há relatos de mudanças de comportamento de TM neste período. Em Janeiro de 1998, o segundo suicídio, "José" se enforca. TM tem acesso ao cadáver, e a partir de então começa a apresentar sintomas. Apresenta quedas, sem machucar-se, risadas imotivadas, dizia que "era José", reduziu o cumprimento de suas tarefas domésticas, ou quando fazia era de forma inadequada. Começou a falar em "morrer". Em seguida ocorre o terceiro suicídio na familia, "Carlos", após um mês da morte de José. Após este último suicídio os sintomas de TM pioram.
A piora, segundo os familiares é que: "Carlos passou a falar em TM.". "Ela dizia que era Carlos, ela via ele da cintura para baixo...". "Quando muito nervosa, se mordia e corria para o mato...". TM tentou suicídio, ao jogar-se em um poço d'água. Levada ao pronto socorro da cidade, foi prescrito medicamentos que não usou. No período que antecedeu ao suicídio, TM foi atendida por um religioso. O religioso descreve TM como uma pessoa que se deixou levar pelo "mal". "O mal estava nela e ela não conseguiu se livrar dele".
No mês de junho de 1998, TM com 13 anos, comete suicídio por enforcamento em sua casa na zona rural.
O suicídio e adolescência
A conduta suicida tende a aumentar com a idade6. Todavia, nas últimas décadas, verificou-se uma clara tendência em todo o mundo para o aumento do suicídio entre os adolescentes7,8,9. Esta tendência tornou-se mais clara a partir dos anos 50 tendo as taxas de suicídio em adolescentes triplicado entre os anos 50 e os anos 80, estabilizando-se em seguida10.
Foram relacionados com o suicídio dos adolescentes vários fatores de risco: fatores familiares como separação dos pais, agressões e condutas violentas no seio da família envolvendo abuso físico e sexual e antecedentes de depressão, suicídio e doenças mentais no quadro familiar11; acontecimentos de vida estressantes como conflitos entre os pais, perda de namorada e/ou morte de familiares próximos12; imitação e contágio devido ao suicídio de figuras com as quais o adolescente havia se identificado13; e existência de doença psiquiátrica, especialmente depressão e esquizofrenia11.
Nos Estados Unidos, o suicídio é a 3ª causa de morte entre os indivíduos entre 15 e 24 anos2. No Brasil entre 26 a 30% dos suicídio ocorrem em indivíduos de até 24 anos14.
O transtorno mental também aparece intimamente ligado a conduta suicida. Entre os suicídios consumados na infância e adolescência, 90% apresentavam transtorno psiquiátrico10,15.
Porém, não basta a existência do transtorno mental para explicar o suicídio, e sim considera-lo como mais um fator de risco entre os jovens16. Nesta linha de estudos, é importante destacar a presença da impulsividade na conduta suicida, e não simplesmente a presença de um transtorno mental15,17.
Em suma, o comportamento suicida é complexo, e está associado com transtornos mentais, impulsividade e fatores psicossociais de risco.
TM e seu ambiente social
O local do acontecimento transcorre em uma cidade do interior paulista. Trata-se de uma cidade com características montanhosas e distante 288 km da capital São Paulo. No momento atual constata-se que cerca de 50% da população vive em área rural ainda que se observe um êxodo para a área urbana devido às precárias condições de sobrevivência encontradas pela população rural18.
Existe um isolamento geográfico no meio rural, que reflete no isolamento dos núcleos familiares, e estes acabam se articulando (ou se desarticulando) em forma de "bairros" rurais. Nestes bairros existem "naçãozinhas" ou grupos de convívio unificados pela base territorial19, 20.
Em suma, nos chamados "bairros" existe um isolamento das famílias, com uma maior concentração de membros de uma mesma família, sendo comum o casamento consangüíneo. E este isolamento social não só dificulta o acesso aos recursos de saúde como também atua como mais um fator de risco para o suicídio. É fato que o isolamento associado com afastamento de instituições como escola e trabalho aumenta o risco de suicídio21. Há indícios que o isolamento da zona rural pode explicar o maior índice quando comparado com a zona urbana22.
Neste contexto social, e com pouco acesso aos serviços de saúde mental, o comportamento de TM foi explicado por "forças sobrenaturais". O sofrimento foi compreendido como uma força externa, "o diabo". Apesar da explicação, somente nos dois últimos meses de vida, TM foi levada para atendimento (médico e com o religioso local).
Porém o que mais chama a atenção na história, são os três suicídios anteriores a TM. É sabido que antecedentes suicidas na familia induzem adolescentes a atos suicidas2,23. As causas estariam no próprio efeito imitativo, ou o "efeito Werther"24; e do "Ciclo da Violência"25. Vale lembrar que o método utilizado por TM foi o enforcamento, típico do sexo masculino e igual aos três suicídios anteriores.
Os aspectos psiquiátricos de TM
A avaliação psicopatológica de TM é feita por inferência aos relatos obtidos. Implica em um "filtro" pessoal de cada personagem deste ambiente familiar, que no momento da entrevista se encontrava ainda comprometido com o suicídio (as entrevistas foram realizadas dois meses após a morte de TM). Assim, cada um possuía suas "explicações" para o ocorrido, percebendo-se assim, um intuito de compreensão do ato e redução de ansiedades pessoais. Vale ressaltar que o "Curador", não apresentava tais ansiedades, e sua descrição foi importante para caracterizar o quadro psicopatológico de TM.
Afastado estas questões, podemos observar que TM apresentava fenômenos que escapavam ao seu controle. Ela permanecia momentos em franco descontrole (com duração de horas) e, posteriormente tais alterações se esvaneciam e ela retomava suas atividades cotidianas.
Podemos observar que tais fenômenos se assemelham aos mencionados por Pierre Janet em sua clássica descrição do estado mental histérico26. TM se encontrava presa a imagem dos mortos, e sem conseguir superá-las. Nestes momentos de crise, essas idéias irrompem como um "delírio sonambulistico", com o desdobramento da personalidade e o fenômeno de possessão. Também se pode inferir no conceito de simbiose, onde o indivíduo precisa desesperadamente de sua contrametade, que faz parte de si mesmo14. E no caso de TM suas contrametades morrem, ou melhor cometem suicídio.
Nas crises TM possui uma linguagem fora de sua consciência pessoal, pois é uma linguagem dos mortos; e sua vontade se encontra comprometida. Este fenômeno é considerado um transtorno produtivo da consciência27. Neste conceito, existe o aparecimento de fenômenos alucinatórios e conteúdos desconectados da realidade imediata, com um caráter de liberação, uma atmosfera confusional e um grau de automatismo. Para Fish existiria uma restrição do campo da consciência, contrapondo-se a uma alteração global como nos casos confusionais28,29. Porém, o termo restrição não se disseminou, e na psicopatologia atual encontramos o termo dissociação. Assim, encontramos características de Neurose Histérica, atualmente revisado como Transtorno Dissociativo.
Para diferenciar de um quadro mais grave, observamos que o conjunto de idéias e emoções se apresentam concomitantes (ideoafetivo), em forma de ondas, diferentes do quadro psicótico esquizofrenico, onde o as idéias e afetos permanecem no campo da consciência, porém separados como se não tivessem relação entre si30.
Em suma, encontramos indícios de diagnóstico de Transtorno de Transe e Possessão5 , e pela classificação americana, Transtorno de Transe Dissociativo31.
Além do quadro dissociativo, pode-se inferir que TM também apresentava, nos períodos de consciência recobrada, sintomas depressivos após a morte do 2º primo: diminui o cuidado com a casa, perda do pragmatismo nas tarefas domésticas, idéias suicidas e tentativa de suicídio. E o religioso que a assistiu, refere que suas idéias eram só de "coisas ruins e tristes". É sabidamente conhecido que o quadro depressivo em adolescente é um prelúdio do suicídio 23,32.
A situação de incesto também foi aventada, pois haviam indícios de ligação afetiva e erótica com o primo primeiro grau (terceiro suicídio). Com o pai chama a atenção o fato de "dormir no mesmo quarto que o pai"; e o de assumir o papel de "mulher da casa". Por outro lado, deve-se relevar este fato, pois estamos falando de uma cultura rural. Porém, afastado o aspecto cultural, os sintomas psiquiátricos (angustia e tentativa de suicídio) também poderiam ser conseqüência direta desta condição incestuosa33. Famílias problemáticas também apresentam-se como um fator de risco para o suicídio14, 34.
Conclusão
Apesar de ser o relato de um caso, a metodologia empregada através da autópsia psicológica, mostrou-se eficaz em esclarecer os fatores psicossociais e o quadro psicopatológico da adolescente. Eleger o fator mais importante para a consumação do suicídio não foi possível.
No caso de TM, além do diagnóstico clássico, se observou importantes alterações psicossociais. Estabelecemos uma relação temporal, pois as alterações psicossociais precederam e deflagraram as alterações psicopatológicas maiores.
Porem não podemos inferir qual fator levou-a a consumar o suicídio (fatores psicossociais ou psicopatológicos).
Estas alterações psicossociais aparentemente são mais fáceis de se estabelecer. Porém, estudos de personalidade nas autopsias psicológicas poderiam indicar maiores dados sobre o impacto destas alterações em uma particular pessoa. No caso de TM, este aspecto é questionável, uma vez que a personalidade da criança e adolescente se encontra em plena formação.
Mesmo com estas limitações, o caso alerta para as medidas preventivas que deveriam ser empregadas como rotina em todos os serviços de saúde mental. Caberia às equipes designar atendimento emergencial as famílias e a comunidade quando ocorrerem suicídios. Esta medida teria o intuito de propiciar medidas terapêuticas a esta vulnerável população. E em conformidade com os dados da literatura35, 36, TM foi atendida nos dias que antecederam o ato. Assim, caberia reiterar aos serviços de emergência clínica a importância da avaliação dos riscos de suicídio, não esquecer que "aqueles que falam também comentem o suicídio"37, e encaminhar os casos suspeitos ao serviço de saúde mental.
Apesar das metodologias preventivas serem limitadas38, o encaminhamento ao serviço de saúde mental, pelas equipes médicas de pronto socorro, poderia desencadear intervenções sobre os fatores de risco de uma forma geral. E como mostra este estudo, principalmente sobre os transtornos psiquiátricos e os fatores psicossociais, e, não necessariamente nesta ordem de importância.
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Endereço do autor responsável: Luis Arenales - Av. J.K. de Oliveira 580 sala 41 Guaratinguetá SP 12505.300. E-mail:luisarenales@terra.com.br
Fonte: http://www.polbr.med.br/arquivo/artigo0502_b.htm.
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